MIOLO DE POTE – Alexandre Furtado
Por Alexandre Furtado
Foto: reprodução
Os
feitiços do Brasil e a ilha mítica
A ideia de América apareceu publicamente, como representação em Novo Mundo, mapa de Martin Waldseemüller, século XVI. A partir daí, desenho e nome consubstanciaram-se numa só coisa e testemunharam, em última análise, o processo de invenção de um espaço cuja identidade estava atrelada ao Outro. Heterogeneidade e sincretismo fizeram parte de sua formação da mesma forma que ancoragens, naufrágios, igrejas, engenhos, escravidão e um número considerável de línguas. Até hoje, por exemplo, em muitas regiões americanas, como é o caso da Bolívia, conta-se com um expressivo contingente populacional mestiço, constituído ali de quéchuas e aimarás, organizados diferentemente, inclusive, em outros idiomas, não somente o espanhol.
João Ubaldo Ribeiro,
a respeito dos incontáveis Brasis os quais achamos conhecer, encaminha ideias,
digamos “anti-históricas”, a respeito da gestação da civilização brasileira;
deixa de lado o modelo entronizado da barbárie, inventado e forjado numa
verdade racista, e, no alinhavo da narrativa literária, fala não mais de um
“quem oficial”, mas de uma outra nação, aquela que, descalça, gerada na
submissão, interrompida, problemática, enfim, cruzada por múltiplos relatos mal
ouvidos, constrói nas margens noções válidas, porém desprezadas, de
brasilidade.
Este outro Brasil,
imaginado literariamente, disfarça-se numa terceira via que traduz a própria
identidade cultural na condição de ser “entre”, além de outras coisas. Ao se ver no chamado entre-lugar,
atenta-se para o fato de não ser mais um sujeito inventado pelo outro e,
sendo a si mesmo, assume-se uma diversidade naturalmente congênita. É possível
descobrir daí que nossa história particular é melhor conhecida quando não mais
mediada pela visão externa a qual se afirma ilegitimamente. Deste ponto, a
questão da brasilidade deixa de ser unicamente portuguesa ou, na idealização
romântico-alencariana, deixa de ser aquela que projeta a figura do índio
formatado ou de um país-paraíso. Na repressiva década de 60, João Ubaldo
inaugurava, com Setembro não faz sentido, o que seria, para mim, uma das
mais contundentes temáticas em seu trabalho, que é a preocupação com os
sentidos que governam a mentalidade do povo. Nestes anos de luta, Ubaldo dera
início a uma longa reflexão sobre nós mesmos, maturada ao extremo em Viva o
Povo Brasileiro de 1984.
Apostando na
dessemelhança das práticas histórico-sociais de escrever e configurar uma
narrativa que não descarta o passado, o autor elabora uma versão totalmente
diferente do mesmo. Em O feitiço da Ilha do Pavão, abraça a escravidão, os degredos, a corrupção
e os jogos de poder, renovando a versão literária com amplitude de humor e
risos. Não se trata de um romance histórico comme il fault, nem mesmo
pretende sê-lo, mas mostra-se transistórico por atravessar o tempo e renovar
a representação histórica. Habitada por
uma população de negros escravos, índios bebedores de cachaça e brancos que
enriquecem com o tráfico de homens, na ilha, coexistem, além do senhor de
engenho idealista, uma degredada insurreta , um imigrante alemão aos moldes
Stadenianos, uma escrava chamada Crescência, inquisidores corruptos, um rei
negro e autoritário que rege o quilombo carnavalizado, diverso da imagem
histórica. É uma caricatura mestiça e revertida do Brasil no século XVIII.
O estilo híbrido do
romance, que é fruto da diversidade de pontos de vista e linguagens, irá
reivindicar, na obra ubaldina, uma representação no mínimo semelhante à
formação de nosso povo, também talhada na variedade das personagens. Este
universo tem por bem revelar as tensões políticas, o jogo das representações,
as imagens sociais e, por fim, os mitos populares. Calar a seriedade passa a
ser um excelente contraponto da cultura oficializada. E isto mostra um dos
pilares da arquitetura bakhtiniana, que é o estudo do romance enquanto gênero
discursivo híbrido e capaz de apresentar o homem como ser de linguagem. A
mistura de diferentes culturas, classes, registros identitários e linguagens
impedem, na visão do teórico russo, a hegemonia de formas estanques de
representação.
Como
sabemos, João Ubaldo Ribeiro é natural da ilha de Itaparica na Bahia; sendo
filho primogênito, muda-se para Aracaju e começa seus estudos em casa com um
professor particular por insistência do pai que também era professor. Quando
alfabetizado, descobre a leitura e passa a devorar os livros infantis de
Monteiro Lobato. Em 51 muda-se com sua família para Salvador e lá aperfeiçoa o
idioma inglês que já vinha estudando, além de latim e francês. Não raro, Ubaldo
era solicitado a traduzir alguns textos literários ou mesmo resumi-los. Em
1957, inicia a carreira jornalística no Jornal da Bahia e um ano depois
ingressa no curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, jamais exercendo
a profissão de advogado.
Conta-se
que Ubaldo, mesmo aplicado, leu mais Rabelais, Shakespeare, Swift, Cervantes,
entre outros do que os livros da área jurídica propriamente. Escreve em 1963, Setembro não tem sentido, um ano antes
de viajar para a Califórnia, EUA. A bolsa de estudos concedida pela Embaixada
norte-americana garantiu-lhe o mestrado em Administração pública. Volta ao
Brasil para dar aulas em Ciência Política na UFBA, mas desiste da carreira acadêmica,
retornando a atividade jornalística. Nessa época, a reflexão sobre a identidade
coletiva aflorava-lhe, de maneira que setembro, o mês em que se comemora a data
de independência da nação brasileira, surgira no título da obra para indagar o
sentido dessa comemoração. Curiosamente, o título teria sido alterado por
sugestão da editora, em 1968, depois
do Golpe Militar e em pleno período de repressão política.
O
Feitiço da Ilha do Pavão (1997), prestes ao festejo do
“descobrimento” de 2000, abarca muitas
coisas misturadas, assim como o Brasil também o faz ; são feitiços, degredos,
corrupção, jogos de poder, subversões,
sexualidade, Inquisição, religião, idealismo, soberba, tirania,
mistério, miscigenação, humor e riso amplificados. A Ilha do Pavão não tem lugar certo, mas tem o seu lugar. Sabe-se
que fica perto do Recôncavo Baiano, perto das Ilhas do Frade e de Maré, mas sua
situação geográfica é misteriosa. Ela
aparece e desaparece, guarda para si um segredo que povoa a curiosidade do povo
do Recôncavo. Sua paisagem nos é bastante familiar no que se refere à fauna e
flora. Também em relação à composição étnica do povo, mestiça e plural. Muitas
povoações se espalham ao longo da costa entre elas, as Vilas de São João
Esmoler do Mar do Pavão, Nossa Senhora da Praia do Branco e Bom Jesus do
Outeirão.
Finalmente, João
Ubaldo imagina a nação brasileira como uma comunidade totalmente diferente
daquilo que nos é contado. Ela é produto do povo, do subalterno, do oprimido e
não das elites. A ficção permite o autor imaginar livremente; lhe permite
inventar fórmulas diversas para nossas identidades multiculturais por meio de
escravas negras, índios livres, degredados, estrangeiros que assumem uma
crítica contra-hegemônica ou ainda nas falas de personagens que representam
instituições oficiais como o Exército, a Igreja ou o Estado.
Em tempos, quase
politicamente estranhos, obscuros, a releitura de O feitiço da ilha do pavão nos coloca em contato com o que talvez
seja mais essencial no Brasil, a noção de hibridismo, de diversidade e pluralidade.
O espaço mítico da ilha nos convida à reflexão.
João Ubaldo Osório
Pimentel Ribeiro (Itaparica, 1941 — Rio, 2014) (Itaparica, 1941 — Rio, 2014) foi jornalista,
cronista, roteirista e escritor brasileiro, formado em direito e membro da
Academia Brasileira de Letras. Ganhador do Prêmio Camões de 2008, maior
premiação para autores de língua portuguesa. Ubaldo Ribeiro teve obras
adaptadas para televisão e cinema. É autor de romances como Sargento Getúlio, O
Sorriso do Lagarto, A Casa dos Budas Ditosos, e Viva o Povo Brasileiro,
destacado pela escola de samba Império da Tijuca, no Carnaval de 1987.
MIOLO DE POTE – Alexandre Furtado
Reviewed by Natanael Lima Jr
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