A LITERATURA VISCERAL
por Alexandre Coslei*
Em seu último trabalho, o escritor Raimundo Carrero alcança o
grau mais elevado. O livro “O senhor agora vai mudar de corpo” confirma a obra
de um compositor refinado, de um autor ousado e visceral. Em literatura, há os
que passam, os que ficam e os que são únicos. Não é preciso dizer mais nada
sobre Raimundo Carrero. Ele é.
Raimundo Carrero/Foto:divulgação
- Ele não se suicidou.
Foi Kafka, que matou Danilo foi Kafka. (O senhor agora vai
mudar de corpo – Raimundo Carrero, Ed. Record: 2015)
Basta pinçarmos o
fragmento de um dos diálogos do último livro de Raimundo Carrero para nos
convencermos que estamos diante de uma literatura semeada nas entranhas, que
brota ensopada da vida e da morte. Num tempo em que o livro é fabricado como o
mais vulgar dos objetos, causa alento a leitura intensa e revigorante um
trabalho delicadamente esculpido por um mestre. Desde a primeira sílaba lida, a
sensação foi a de nos lançarmos numa corredeira desenfreada, numa queda livre
vertiginosa. Não causa medo, porque não cabe o medo na descoberta. A boa
literatura é o ato de descobrir-se.
Como escritor
nordestino, Carrero é testemunha de textos que refletem a condição árida do
sertão. Como autor, não escolheu o lugar comum da miséria sertaneja ou, como
ele mesmo diz, das caveiras de bois, da terra estorricada, das cercas quebradas
e da falta d’água. Preferiu explorar a complexidade fértil da condição humana,
fez do escrever a obsessão pelo mergulho profundo que exige o limite do fôlego.
“O senhor agora vai
mudar de corpo” abre a primeira página com a intimidação da morte, a
expectativa do inevitável e a surpresa com a possiblidade da sua antecipação
indesejada. Em toda a sua breve extensão, o livro é permeado por uma
desesperança que se confunde com a necessidade da fé, uma fé que não quer ser
mística, mas consequência da necessidade de sobreviver para criar. A arte como
genitora da vontade de viver.
Impotente após sofrer
um inesperado AVC, o escritor vagueia pela angústia dos que sofrem da falência
do corpo em conflito com a nostalgia dos sentidos. Cego e paralisado pelo
derrame, o que transparece é que a maior dor nasce da solidão imposta pela
mutilação da palavra. Sem conseguir falar, sem poder escrever, o homem é um
vácuo entregue ao limbo da existência. É nessa escuridão momentânea, trágica e
irremediável, que ele pondera sobre o caráter indomado de outros autores.
Remete-se à Clarice Lispector e destaca o sentido selvagem de uma literatura
que parecia escrita com sangue.
A agonia da inércia
física detona um atrito espiritual, o escritor deseja a reabilitação, anseia
pelo milagre. No entanto, não se considera merecedor, não reconhece em sua
jornada um único momento santo que lhe valesse qualquer benção. Quer se
despojar das vaidades. Quer renegar até a humildade, que talvez seja a maior
das vaidades, a pior das hipocrisias. Quer merecer. Cada página virada nos faz
incorporar o despedaçado narrador, somos empurrados junto com ele pelo sopro da
religião que consola. “Não temas, eu estou aqui ”... A frase de Cristo é a ilha
do náufrago.
Urubus, aranhas e
morcegos passeiam pelas folhas de papel que pulsam como criaturas vivas.
Alegorias que espreitam a vida efêmera, que encarnam a morte; alegorias que
confirmam a origem nordestina da história; alegorias que tornam o enredo
universal. Metáforas que consumam o significado de tudo. A morte que não impede
que a arte seja a declaração incessante da beleza.
Impulsionado pela
contínua volúpia de parir a obra, o autor expressa a sua perplexidade diante da
opção alheia pelo suicídio, demonstra fascínio e desgosto pelos jovens que se
suicidam. A solidão, a agonia e a felicidade do homem que confirma a derradeira
sentença de se matar. A inexplicável “decisão feliz dos suicidas”.
Há menções associadas
ao cinema. Há imagens que evocaram Fellini em minha mente. Há uma névoa
folclórica que o escritor não se inibe em assumir quando afirma que o folclore
é o símbolo da condição humana.
Raimundo Carrero nos
impõe sua escrita ágil, enxuta e de uma densidade atmosférica sufocante. Uma
literatura visceral a cada linha, a cada parágrafo, a cada capítulo. Não, não
cansa. Somos sugados pelo redemoinho feroz de cada palavra que reconstrói um
homem encarando o possível epílogo da sua realidade. Somos tragados pela
verdade do texto.
Literatura não é ciência,
é arte, reunião de elementos estéticos – ele diz.
“O senhor agora vai
mudar de corpo” não se contenta em ser apenas um romance, é um tributo à
literatura, ao artista, é o registro da maturidade absoluta de um escritor, é o
próprio milagre que o autor busca nas páginas que compôs.
*Alexandre Coslei
(RJ) é jornalista e
escritor
A LITERATURA VISCERAL
Reviewed by Natanael Lima Jr
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