CONTO DO DOMINGO
Os invisíveis
(conto) de Fernando Farias
Foto: arquivo
pessoal do autor
Um corpo de uma mulher nua apareceu enforcado. Pendurado por
cordas no topo do maior edifício da cidade. Multidão curiosa agitada e
engarrafamentos.
Quando a policia o retirou viu que era um desses manequins de loja de roupas.
Os responsáveis pelo atentado comemoram com chá de camomila.
Moravam ao
lado da estação de tratamento sanitário. A casa pintada de um azul cemitério e
iluminada por velas. Móveis de antiquário que faliu. Acendiam velas para acalmar os gases que
emanava de onde os
esgotos se encontravam. As janelas fechadas quase que limitavam o cheiro de
merda.
A rala
aposentadoria permitia a vida simplória e se protegiam das goteiras e dos
olhares indiferentes que os tornavam translúcidos. Poucas vezes alguém lhes
dava passagem ou um lugar para sentar. Tinham que se desviar nas calçadas ou
seriam derrubados. Nem eram assaltados. Quando a moça da padaria falava com
eles gritava com se fossem surdos.
No passeio de
mãos dadas na praça, para um banho de sol, escutavam as mães dizer para as
crianças, pare de chorar ou chamo aqueles velhos para te pegar.
Andavam como
seres que perderam a hora da morte. Suas roupas anacrônicas como se fossem
adquiridas numa feira de mortalhas usadas.
Só quando
conseguiam um banco para sentar podiam conversar sem se cansar das caminhadas
de passos curtos. A cada prédio, a cada loja, em torno da praça não relatavam o
que viam. Era como estar em dois tempos. A padaria naquela época era uma
vacaria onde as crianças tomavam leite tirado na hora dos peitos das vacas.
Viam a galeria de lojas modernas e ao mesmo tempo o casarão dos tempos em que
tudo ali era um engenho. O conjunto de
apartamentos agora cobria a imagem dos casebres da senzala.
Não,
discordava ele, as árvores não são mais as mesmas, Aquelas antigas caíram por
causa da rede elétrica. Ela insistia em
dizer que as palmeiras atrás do supermercado eram as mesmas imperiais. Para ele
as árvores eram atávicas como aquelas pessoas que ali passavam, mesmo com suas
roupas estranhas de cooper, podiam-se ver os mesmos rostos. Vejam estes negros,
tiveram suas bisavós estupradas pelos mesmos herdeiros brancos. As gerações se
esquecem.
Maristela se
calava e voltava no tempo em que era jovem. Era uma bunda esclarecida que
balançava ao sabor dos ventos que lhes faziam ondinhas na pele. Cabelos aloirados com
cerveja e fixados com vaselina perfumada. Naqueles tempos não podia ver um
homem, que Maristela ficava toda emocionada. Já teria comprimido milhares de
pênis ao longo dos 89 anos. Os seios duros que ameaçavam furar os olhos dos que
se aproximavam. Agora são destes que ameaçam saltar até os joelhos.
Dizem que os
animais se parecem com os donos. No quintal da casa criava uma galinha e doze
galos reprodutores...
Sentados, de
mãos magras juntas, coração e pulmões habituados ao mesmo ritmo, emanando
cheiro de perfume de alfazemas. Caducos mergulhados na memória.
Voltavam para
casa. Um arrastando o outro. E antes de dormir trocavam ideias, faziam os
planos para as ações do dia seguinte. E dormiam em suas redes nordestinas à luz
das velas.
Godofredo
roncava mais. Faltava uma semana para os 87 anos. Gordo, baixinho, careca, pele avermelhada,
pênis atrofiado por falta de uso. Ainda usava as gravatas vermelhas do tempo do
partido. Foi no festival se seresta que
se conheceram. Aposentou-se como professor de teologia. Ela se fez antes de
desinteressada e lhe deu atenção enquanto ele pagava as bebidas. Apresentou-se
como advogada trabalhista enganando a ele e a vocês leitores. Desde que chegou
do interior de Caruaru era prostituta. Mas agora isso não importava mais.
Percebeu logo pelo analfabetismo e o vocabulário arrastado de poucas palavras.
Tinha com quem dormir na rede e lhe fazer sopas todos os dias. Do passado não
se faz perguntas.
Discutiram.
Godofredo queria modernizar as dez pragas do Egito na cidade. Mas Maristela
achava impossível fazer as águas dos rios ficarem vermelhas ou provocar um
blecaute na cidade sem causar feridos e mortos. Brincar é uma coisa, matar
gente é outra.
Naquela noite,
não teve sopa. Comemoraram o falso enforcamento de uma boneca que agitou a
cidade e o aniversário de Maristela com um bolo de laranja e suco de goiaba.
Chá de camomila.
O dia
amanheceu, acenderam novas velas sete dias, tomaram o resto da sopa, ouviam-se
barulho a cada chupada na colher. Recapitularam o plano, não anotavam nada, e
repetiam as informações sobre os locais da ação. Ela conferiu que os trinta caranguejos,
vermelhos como ele, estavam vivos e divididos em duas caixas.
Conheciam bem
o terreno. Naquela hora da manhã as pessoas faziam filas. Como combinaram,
subiram até o último andar em elevadores diferentes, deixaram as caixas,
esperaram um pouco e desceram. Os porteiros atentos aos jornais e a jovem de
vestido curto.
Ao chegar ao
térreo os caranguejos assustados mal conseguiam correr entre as pernas Uma
senhora estava desmaiada. Uns tentavam esmagar os crustáceos. Alguém gritava
pela polícia. Quem estaria criando caranguejos num prédio de escritórios? Só
podia ser um atentado comunista contra as empresas daquele edifício, dizia ao
vivo um repórter de
rádio.
Voltaram para
casa à tarde após saber que a policia prendeu quatro pedreiros e vinte nove
caranguejos. Um deles poderia estar numa bacia sanitária do banheiro masculino.
Nos dias
seguintes voltavam para casa e ficavam escutando o rádio. Felizes como crianças
brincando na lama em dias de chuva.
Noticiava-se
que a policia atribuía as ações a uma quadrilha de jovens sabotadores. Um
deputado acusou o Exército de provocar atentados para criar clima para um golpe
militar. O pastor falava do fim dos tempos. Um taxista acusou os mulçumanos. Os
bandidos estavam soltos e este governo de merda não faz nada.
Seguiram-se o
caso das abelhas no trem do metrô. Muitos feridos, mas nenhum morto. Sopa de
feijão à noite. Fogos de artifício na porta da maternidade. Tomaram sopa de
verduras. Pó de mico no shopping. Sopa de lentilhas. Sapos na merenda escolar.
Sopa de tomates. Fuga de macacos de um circo. Caldo verde. Sinais de trânsito
apagados. Sopa de cebolas. Bancos da catedral sujos de peixe e atacados por
formigas na hora do casamento. Sopa de repolho. Sepulturas abertas e ossadas
encontradas nas arquibancadas no dia do jogo. Sopa de abóbora. Centenas de
galinhas atiradas no desfile de moda verão. Neste dia só podia ser canja.
Agora o plano
era repetir os caranguejos num desfile de escolas de samba.
A polícia
investigou até as imagens das câmeras de segurança que mostram a presença de um
casal de velhinhos. Porém, eram
apenas velhinhos.
Para a frustração dos jornalistas os atentados pararam. O último caso
foi o fogo numa casa da periferia. Velas que provocaram um incêndio e matou
apenas centenas de caranguejos.
CONTO DO DOMINGO
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:11
Rating:
Muito bom. Engenhoso e hilårio. Abraço.
ResponderExcluirparabéns Fernando!!!
ResponderExcluirQue bela narrativa noir, marginal... Bebendo com Bukowski e Kerouac... Quase roteiro, quase cinema... Ironia fina, humor negro is beatifull...rs Tua tela pintada em cores de cemitério.. E os caranguejos mortos falam muito... Saudações! Parabéns!
ResponderExcluirSimplesmente incrível! Em um único texto consegue reunir os sentimentos mais antagônicos, nos faz rir, chorar e refletir sobre a vida como ela é, parabéns! Abraços
ResponderExcluirAdorei Fernando. Um texto interessante cheio de surpresas inclusive o caragueijo na bacia sanitária.
ResponderExcluirAcabei de ler, Fernando! Você achou um jeito fantástico de falar da velhice, da invisibilidade dela, o incômodo que provoca: que fique quieta no seu canto. Com sua trama inspirada deixa pensar em como se nega a dignidade dos velhinhos. Um quê de absurdo e travessura, melancolia como música de fundo. Se puser um pé no real (tenho um passado na engenharia), pensaria nesses galos reprodutores juntos: se matariam! Maristela é linda, consegue a façanha. Gostei, viu? Com Godofredo, professor de teologia, uau. Maravilha! Adorei ler; ritmo gostoso o do texto, as frases curtas, valeu!
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