O CONTO DA SEMANA
Sábado
(conto) de Marilena de Castro*
Img:
Reprodução
Na noite de meu aniversário, enquanto
apagava a vela do bolo, a camisola esquecida no banheiro tornou-se chamas.
Corri até lá e esbarrei com Eliza. Ela estava com um cigarro aceso e um sorriso
manso. Nunca fomos amigas. O nosso relacionamento era através de Paulo. Suas
visitas eram sempre para pedir receitas para ansiedade e depressão. Queixava-se
muito de Carlos para Paulo.
Eu sempre fora cética em relação às
reclamações de maus tratos sofridos por elas e pelos filhos – ceticismo que
persistiria, se não fôssemos a um jantar no apartamento do casal. O prédio
parecia mais velho do que era. Térreo sem cor janelas com grades grossas
descascadas. Dentro o ambiente me despertou angústia mal iluminado e abafado. A
mesa fora coberta com linho branco castiçal com velas acesas pães uvas outras
frutas de época vinho e peixe. Nos cantos da sala livros amontoados, discos de
vinil empoeirados, junto de uma velha vitrola, caixas vazias e cadeiras
quebradas. E ao redor da mesa, os filhos varões usavam o quipá como se pesasse
sobre a cabeça e o dono da casa, Carlos, lia um trecho da Torá. De olhos
baixos, Eliza e as meninas tinham as cabeças cobertas com lenços brancos.
Escutavam atentas e cansadas. Logo rezariam as orações do sábado. Tudo ali
parecia transitório.
E a mulher de olhos azuis expressivos,
mãe de quatro filhos, sem ar, desmaiara. Havia tanta tristeza em seus olhos
como os matizes escuros de uma noite sem luar. Cigarro aceso, muita fumaça,
pouco ar, vida sufocada, sem ar. Eliza vai morrer, dizia choroso Carlos.
O diagnóstico não tardou: era câncer
no pulmão. Talvez tenha sido mais carinhoso com a morte do que com a vida.
*In
Contos de Oficina, p. 37/38
O CONTO DA SEMANA
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:24
Rating:
Nenhum comentário