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O COLAPSO DA CRIATIVIDADE

por Alexandre Coslei*


Img: Reprodução

Observando o cenário nacional e focando nos jovens escritores, o que vemos é um painel que nos remete ao século 19, quando os importados da língua francesa e inglesa trouxeram as primeiras sementes de fertilidade para os autores brasileiros. O que testemunhamos hoje são aqueles mesmos romances adocicados, moralizantes (alguns, com viés evangélico), a exacerbação do sentimentalismo, o didatismo e a fantasia gótica. Os que fogem das velhas receitas enveredam por temas subversivos que flutuam no superficial, limitando-se a meras apologias devido a uma abordagem precária – nessa categoria se encaixam os romances que versam sobre violência gratuita e decadência da sociedade.
Há outros dois modelos em voga, um existencialismo maçante e um erotismo tacanho que tem muito a aprender com o Marquês de Sade. O romance, como gênero literário, involuiu. Há uma tendência retrógrada que se enraizou, apesar do irresistível convite que nos oferece este admirável mundo novo.
No Brasil, a incapacidade autoral para espelhar de maneira autêntica e profunda os novos tempos evoca como causas o esfacelamento do sistema educacional, a mutilação da cultura e a submissão das editoras à colonização intelectual imposta pelo estrangeiro. O número de consumidores de livros cresceu desde a consolidação do romance no país, mas a qualidade dos escritores e leitores sofreu uma implacável erosão. A crescente comercialização de livros, paradoxalmente, não incide no aumento da quantidade de leitores, fato comprovador da tese que afirma que livros se tornaram objetos de colecionador, firulas decorativas. Livros deixaram de ser formadores da consciência crítica.
É preocupante quando constatamos que uma das peças mais pulsantes e revolucionárias da nossa literatura continua sendo Memórias póstumas de Brás Cubas, escrito em 1881. Sob o pretexto do lucro, instalou-se a lógica mercantilista dos nichos literários que movimentam as vendas e impõe rédeas curtas à criação.

A leitura e a escrita exigem a imersão absoluta dos seus apóstolos, atitude que afronta o imediatismo ruidoso e consumista dos dias correntes. O século 21 escolheu a velocidade, a dinâmica, as mudanças e a constante evolução. Na contramão, a literatura quer fabricar calhamaços, cultivar a estagnação, teima em ser arcaica. Como essa arte que venera o anacrônico pode sobreviver entre indivíduos que amanhecem ansiando pisar no futuro? Passado é vocábulo morto e o presente é peça de museu num universo onde se vive no amanhã.
A supremacia fotográfica da TV e do cinema fizeram a indústria dos roteiros prosperar. Séries americanas são cultuadas por estarem em sintonia com as expectativas do homem coletivo gerado pela internet. Já os romances, excetuando-se os best-sellers, ganham mais visibilidade quando são adaptados para o cinema ou TV, justamente pelo processo em que são lapidados, num modelo de narrativa ágil e objetiva.

Não é à toa que o conto recuperou o fôlego como gênero literário. Forma breve que transmite histórias, imagens e pensamentos numa configuração que consegue acompanhar as necessidades da prosa moderna. No hiato do ciberespaço a poesia também se reergue com sua índole intrépida, navegando por mares inexplorados.
Editoras que atuam em nosso solo, antes importadoras de títulos estrangeiros, mantêm diretrizes caducas quando condicionam recrutar apenas escritores brasileiros que estejam dispostos a produzir os velhos romances sobre mocinhas. É curioso que novos conceitos se vendam como razão social para a ressurreição de exercícios estéticos bolorentos. Definitivamente, o romance brasileiro não somente estagnou, ele retrocedeu ao abdicar das virtudes retóricas daqueles que fundaram as suas bases estilísticas.
Na verdade, é possível que o século 19 fosse até mais avançado na motivação à criatividade. Gabinetes de leitura, bibliotecas, livrarias e uma fartura de jornais difundiam e propagavam obras literárias. Saraus preservavam o hábito da leitura em voz alta e faziam proliferar os círculos de ouvintes que, no final das contas, engrossavam o conjunto de leitores.
Na internet, as redes sociais e os sites se valem, prioritariamente, da palavra escrita. É do senso comum que a revolução tecnológica valorizou e disseminou o ato de escrever como nunca se teve notícia. No entanto, esse destaque não se expressou em níveis qualitativos; pelo contrário, o texto foi pasteurizado.
Por algum motivo, emerge uma intrigante sensação no espírito humano, relegamos ao esquecimento a nossa mortalidade. Com isso, anulou-se a urgência de registrarmos o que nos rodeia e as impressões que marcam as nossas vidas. Somos X-Mens, Vingadores, Super-Homens, seres mutantes em que se alastra a virulência da alienação.

Atribuem a Cervantes o título de precursor do romance moderno e em Dom Quixote de La Mancha consta um episódio de forte simbolismo na interpretação que Otto Maria Carpeaux expôs no artigo “Cervantes e o leão”. Dom Quixote, com lança em punho, ao cruzar com uma carroça que transportava bravos leões engaiolados, desafiou o carroceiro para que abrisse uma das jaulas. Receoso, o sujeito abriu a jaula e libertou o macho. O leão saiu, olhou em volta e retornou ao fundo da jaula, desprezando o atrevimento do cavaleiro da triste figura.

Carpeaux explica que aquele leão não é o símbolo da realidade triunfadora, é um bicho medroso e banal que prefere o conforto seguro do aconchego, mesmo que seja na jaula. Assim se comportam as editoras e os jovens autores que se submetem aos grilhões do mercado: desprezam a audácia em favor do bálsamo morno do óbvio e da vaidade. A vanguarda é para os ousados.
O filósofo húngaro Georg Lukács classificava o romance como uma epopeia burguesa e analisava com rigor o contraponto entre narrar e descrever. Para ele, a narrativa constrói o objetivo social do romance. Infelizmente, se considerarmos Lukács, somaremos outro ponto negativo para a literatura fabricada por nossos autores neófitos, sempre mais afeita às minúcias descritivas que compõem o quadro alienante.
Haverá os que acusarão este articulista de se empenhar numa crítica generalizada. O que se vê quando subimos ao alto de uma montanha? A paisagem que predomina ou os pequenos recantos camuflados? A regra obstrui as exceções. Importa ressaltar que o romance viveu diversos dilemas e a partir deles se renovou.
Que um Quixote se insurja entre a geração Blade Runner e traga à luz a obra que irá mapear o território cibernético do homem virtual. Que em um de nós, replicantes, haja o destemor capaz de romper o vácuo do status quo.


*Alexandre Coslei é jornalista carioca, agregando formação em Letras pela     Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
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