Um pouco de Clarice Lispector: “A fuga” e a vida
Publicado em obvious por Gabriela Souto*
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As personagens femininas em imagens de sua
vida cotidiana, os processos epifânicos, os devaneios e as revelações são
marcas estilísticas muito conhecidas a respeito da escrita de Clarice
Lispector. Na leitura do conto “A fuga”, a identificação de tais marcas também
ocorre: uma mulher em sua rotina de 12 anos de casada, que, em um dia abafado
de pré-chuva, sofre um momento de iluminação que a leva a uma iniciativa: ir
embora. Contudo, considerando-se a narrativa de uma perspectiva não só
literária e de gênero, mas antes e demasiadamente humana – uma vez que a
literatura dá nova forma à vida e nela se inspira – um dos caminhos de leitura
revela confusões psicológicas que imprimem um sentimento de autoenganação
quanto à vida, suas escolhas e decisões; de como o ser humano, muitas vezes,
tenta se convencer, nem que seja por um período de tempo, de que algo logo
mudará, apenas para, em seguida, voltar à rotina com algum sopro de coragem e revigoramento.
Em resumo: os modos de fugir da fuga.
O conto “A fuga” principia arremessando o
leitor no relato, sem explicar onde, quem ou por quê: Começou a ficar escuro e ela teve medo. Essa contenção de informações contribui
para a não diluição da intensidade dos efeitos que o texto proporciona: muitos
podem se ver nessa personagem, ao menos uma vez já foram lançados em um momento
aflitivo que parece sumir com todas as referências.
Tal início revela uma situação crucial e
entrega motivos que perpassarão toda a narrativa: o atraente e assustador
desconhecido; as indecisões; e o não sentir como consequência da rotina. Além
disso, enquanto a protagonista segue por uma marcha de luta em um ambiente inóspito, encharcando-se
pela chuva, os demais transeuntes parecem andar em outro plano, impermeáveis
sob seus guarda-chuvas e a olhando com estranheza. Quando se passa por um
momento aflitivo, parece mesmo que os outros têm uma vida sempre mais fácil e
simples, e a tempestade cai só sobre quem sofre.
Quis sentar-se num banco do jardim, porque
na verdade não sentia a chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco
de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto
de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na
marcha (LISPECTOR, 1979).
A partir daí, percebe-se o cansaço e a
opressão que a recém-descoberta liberdade tem causado à personagem. São muitas
dúvidas que a segurança do lar de casada há muito não a impunham: O que vai
acontecer agora?; Que é que eu faço?; Como foi que aquilo aconteceu?. Os doze
anos de casamento que ela tenta deixar para trás pesam tanto quanto a angústia
da liberdade. Voltar a si e perceber que tudo ainda existe fora da habitual
rotina é, simultaneamente, libertador e amedrontador. Esse é o ponto essencial
para o processo de autoenganação, começando-se por forjar o fato de que só há
alegria e alívio frente a uma decisão tão definitiva quanto a de deixar o chão
que até então a susteve, ainda que este também a fixasse para trás. E o medo?
Será mesmo tão pouco?
Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco
de medo e doze anos (LISPECTOR, 1979).
O porto de segurança e aprisionamento, no
conto, aparece por meio da figura do marido, a qual é contraposta por outra
figura masculina, o mar, que representa a liberdade. O mar é forte, um caminho
que, mesmo por escolha, pode carregá-la, ao mesmo tempo em que fascina e seduz,
assusta, por não se saber da sua profundidade. Como se sustentar assim, tão
livre? Tem como se acostumar a viver em profundidade, talvez numa queda sem
fim? Foi essa a escolha que a protagonista fez quando saiu de casa: não ter
mais onde fixar os pés.
O mar revolvia-se forte e, quando as ondas quebravam junto às pedras, a
espuma salgada salpicava-a toda. Ficou um momento pensando se aquele trecho
seria fundo, porque tornava-se impossível adivinhar: as águas escuras,
sombrias, tanto poderiam estar a centímetros da areia quanto esconder o
infinito (LISPECTOR, 1979).
O marido é a personalidade oposta à
desconhecida e profunda escuridão e à liberdade de movimentos. Sua conhecida
presença age como uma lâmpada do bom senso, a luz que faz a mulher enxergar limites, tolher
pensamentos, não perder tempo com o que seriam coisas inúteis; mas inúteis para
quem?:
Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias
se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está
perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa.
Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa
venha transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação
das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os
desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por
que é que os maridos são o bom senso? (LISPECTOR, 1979).
A
personagem está confrontando duas escolhas: a de "hoje", ir embora,
ser livre, lançar-se à ventura do mar; e a feita anos atrás, quando já parecia
cansada de não saber lidar com a rotina da liberdade, com a falta de
estabilidade: Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia
caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés...
No
"agora", atitudes do passado são rememoradas sob uma perspectiva que
as considera risíveis quanto ao contexto de vida atual e às mudanças que os
anos trazem e carregam.
Em
todo esse momento de devaneio e questionamento, a mulher faz afirmações com leve
ironia, as quais indicam que ela sabe que voltará para casa. A grande
revelação, então, sugere que, depois de tantos anos com pé firme, depois de 12
anos que pesam como quilos de chumbo, essa grande âncora já não permite que ela
se entregue ao mar, que seu navio parta sem saber ao certo o destino e a
profundidade.
A
idealização da fuga seguiria o seguinte roteiro: muito calor e abafamento, que
tem como consequência uma aliviadora chuva, a qual traz frescor e serenidade.
Contudo, o resultado não é o ideal: depois da chuva, vem um frio que a toma por
dentro.
Oh, tudo isso
é mentira! Qual a verdade? Doze anos pesam como quilos de chumbo e os dias se
fecham em torno do corpo da gente e apertam cada vez mais. Volto para casa. Não
posso ter raiva de mim, porque estou cansada. E mesmo tudo está acontecendo, eu
nada estou provocando. São doze anos. (LISPECTOR, 1979)
Há
doze anos não sente, mas sentir é perigoso e instável. E a falta de dinheiro? E
como ser uma senhora desacompanhada? E toda a novidade? Um movimento comum do
ser humano frente a uma escolha que oferece riscos: encontrar motivos para
voltar, pois fugir seria demasiado audacioso. Todo impulso, toda a coragem...
Tudo mentira e representação. Já não se sabe quem se é, o que é só uma
convenção, qual é a rotina a seguir... De repente, a única alternativa é fugir
da fuga; voltar, porque o movimento - interno ou externo - é esse. Enfim, ter
onde pôr os pés: luz e terra firme.
*Gabriela Souto é escritora, roteirista, compositora e colunista da obvious
Um pouco de Clarice Lispector: “A fuga” e a vida
Reviewed by Natanael Lima Jr
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09:37
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Gosto muito da Clarice Lispector, e seu comentário sobre "A Fuga", Gabriela, está maravilhoso...
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