TransWinter

Traduzir-se, questão de vida ou morte


Frederico Spencer*
frederico_spencer@hotmail.com
















Imagem: Reprodução Ferreira Gullar


O poema Traduzir-se de Ferreira Gullar fala sobre a dualidade das coisas, da vida e do nosso interior, principalmente. Matéria de difícil acesso, seja por nossa ignorância ou por nossos medos, medo do nosso encontro particular e sincero, mergulho no abissal de nossas almas.

Num ato de coragem o poeta expõe nossas metades, não aquelas “caras metades” cantadas nas músicas, sonhos de devaneios para as nossas carências, como também não aquelas apregoadas nos livros de autoajuda. Neste ato de coragem o poeta nos cinde e nos leva ao ato da reflexão filosófica de quem somos na realidade: “uma parte de mim é permanente/outra parte se sabe de repente”.

Nesta ruptura do permanente e do de repente nos vemos frente as nossas verdades menos visitadas de forma consciente, por vezes nos adiamos empurrados pelos modelos de comportamento advindos da estrutura moral.

Conforme o poeta: “uma parte de mim é só vertigem/outra parte linguagem”, vivemos sobre o império da consciência, modeladora de nossos comportamentos, vivenciados e adaptados às regras do convívio social, sob pena da nossa inconsciência subjugada, porão do nosso eu mais profundo, da nossa potência mais pura relegada.

Essa dualidade nos joga a um diálogo que muitas vezes nos recusamos a enfrentar, como um Sísifo que passa sua vida iludindo a si e aos outros, através de suas mentiras, que tinham como propósito enganar a própria morte.

Passamos nossa vida nas sombras de nós mesmos por medo de nos tocarmos, de nos conhecermos e de nos descobrirmos, mas, o poeta aponta para uma saída: “traduzir-se uma parte/na outra parte/-que é uma questão/de vida ou morte-/será arte?”. Como trata o poema, devemos traduzir a sombra e a luz que nos habitam para descobrir a vida que nos permeia e nos torna humanos, esta é a arte da vida.

Viver a vida com arte, para o poeta, é fazermos uma viagem na dialética da unicidade do nosso ser, buscando um diálogo constante com aquilo que nos permeia e nos divide ao mesmo tempo e teima em querer virar realidade, para revelar a nossa verdadeira identidade sem as máscaras que muitas vezes temos que vestir.

“Uma parte de mim é todo mundo/outra parte é ninguém: fundo sem fundo”, neste verso o poema aponta para outro processo, o da desconstrução dos paradigmas, para uma reconstrução advinda do reconhecimento do outro, da natureza, do todo que nos rodeia para um novo conceito de nossa realidade interior. 

Enxergar o outro como dualidade é nos vermos também como seres duais que somos: “uma parte de mim pesa e pondera/outra delira”, num processo de construção contínua de aperfeiçoamento, até o retorno ao nosso centro: “uma parte de mim é multidão/outra parte estranheza e solidão”.

No verso “uma parte de mim almoça e janta/outra parte se espanta” o poeta nos traz de volta para a nossa realidade cotidiana, nos mostrando a estranheza que pode nos causar o simples ato de almoçar e jantar, necessidades de todos, e que ainda existe uma grande parcela da população que não consegue realizar o óbvio.


*Frederico Spencer é poeta, sociólogo e psicopedagogo







Poemas de Natanael Lima Jr, Antonio de Campos e José Inácio Vieira de Melo







Homem (in)comum
Natanael Lima Jr

Imagem: Reprodução










sou homem (in)comum
de corpo e alma
feito da paisagem escura das ruas

sou viajante do tempo
sem rumo, único e incompleto
feito chama que não apaga:
a vida que me acompanha
está sempre acesa

sou sobra do excesso
das coisas passadas
e envelhecidas

sou cúmplice dos sonhos
que brotam da terra
sem flores e perfumes

(In À espera do último girassol e outros poemas, 2011, p. 71)




Gaita e tambor de Irlanda
Antonio de Campos

              à memória de Bobby Sands


 
Imagem: Reprodução













O teu coração, gaita de Irlanda,
não é flor aberta de ontem –
há centenas de anos os avós já a tocavam
E quando ouve música, o povo dança

O teu coração, tambor de Irlanda,
não houve baquetas de mais velho carvalho
que te fizessem a face romper. Antes,
de seu vazio arrancavam mais alto troar

Sra. Tatcher, vosso argumento é quase perfeito,
só tem duas falhas: não se faz prisioneiro
o que deseja apenas mandar em casa,
nem se condena o vinho transbordante da taça

por ser menor seu espaço que o do barril
à vossa felicidade tão bem serve.
Gaita e Tambor vivem e quando ouve música,
o povo também sabe marchar

Olinda, maio 07, 1981




Ciço cerqueiro
José Inácio Vieira de Melo*


 
Imagem: Reprodução












O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé de cabra,
apregar grampo nas estacas.

Em troca peço pouco:
basta me dar leite azedo,
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé de pau.

Precisa nada mais não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.

José Inácio Vieira de Melo é poeta e editor do blog Cavaleiro de Fogo 








A Árvore da Poesia (conto) de Juareiz Correya*

 Para o Espaço Pasárgada, do Recife




Fachada do Espaço Pasárgada:
Casa do poeta Manuel Bandeira
(Rua da União, 263, Recife)



Manuel plantou a amendoeira na beira do rio com as suas mãos de criança. Todos os dias saía da Rua da União e ia vê-la crescer. A sua primeira contemplação era ela. Depois as brincadeiras.

Os meses se passaram e vieram uns homens da Prefeitura com desenhos, papéis indecifráveis, aparelhos estrangeiros, uma máquina com um tripé que não era um lambe-lambe, e começou a surgir, e surgiu, a ponte. Do outro lado, o Teatro Santa Isabel aguardava os que faziam a travessia da Rua da Aurora.

A amendoeira cresceu e ficou maior do que o casarão da esquina da Rua da Aurora com a Princesa Isabel. Derrubaram o casarão, ergueram um edifício azul, para instalação da Secretaria de Segurança Pública da cidade, e a amendoeira continuou crescendo e ficou do mesmo tamanho do edifício azul.

Manuel já vivia outras aventuras mas sem esquecer a sua amendoeira. E um dia resolveu se mudar para o Rio de Janeiro. Para os seus sonhos o Rio de Janeiro seria um lugar melhor do que o Recife. E de lá seguiria mais facilmente para outras cidades do mundo que desejava conhecer : Paris, Lisboa, Madrid, Londres, Genebra, Roma, Veneza, Shangrilah, Pasárgada...

Manuel foi se despedir da amendoeira. Acariciou suas grossas raízes, misturou-se meio extasiado a sua folhagem generosa, quase caindo no rio, se deixou ficar junto ao seu tronco robusto, voltou-se inteiro para ele e, não teve dúvida, penetrou-o como quem atravessa uma porta aberta, um corpo não-físico, a alma da árvore.

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Disseram depois, os seus parentes, que Manuel viajou ao Rio de Janeiro. Estava lá. Isto era o que sabiam os seus amigos e conhecidos também, todos os moradores da Rua da União, e as famílias, os Bandeira, os Mello...


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Manuel nunca saiu do Recife. E cresceu com a sua árvore : densa, frondosa, um verde exuberante e sempre jovem, em contraste com a cidade e a própria Rua da Aurora, que morre no seu cinzento e na desconstrução dos seus casarões, e com o Rio Capibaribe, um morto carregando uma história de vivo, como se fosse perene e eterno feito a árvore de Manuel.



(Recife, quarta-feira de cinzas,
fevereiro / 2009 )


*Juareiz Correya é poeta e editor da Panamérica Nordestal Editora e Produções Culturais





Diga aí! 


“Se existe amor, há também esperança de existirem verdadeiras famílias, verdadeira fraternidade, verdadeira igualdade e verdadeira paz. Se não há mais amor dentro de você, se você continua a ver os outros como inimigos, não importa o conhecimento ou o nível de instrução que você tenha, não importa o progresso material que alcance, só haverá sofrimento e confusão no cômputo final. O homem vai continuar enganando e subjugando outros homens, mas insultar ou maltratar os outros é algo sem propósito. O fundamento de toda prática espiritual é o amor. Que você o pratique bem é meu único pedido.” (Dalai Lama – Líder Religioso)




Diga lá!




"Só mesmo um personagem como este (Dom Quixote) e uma história como esta, para nos exporem à nossa própria e invencível contradição: queremos a sensatez que nos protege, mas não resistimos à loucura que arrebata. E, por isso, inventamos a arte, que nos permite experimentar a loucura sem correr o risco de irmos parar num hospício." (Ferreira Gullar – Poeta e Crítico Literário)






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