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Faces da Resistência na Poesia de Alberto da Cunha Melo - Fragmentos


por Cláudia Cordeiro*












Alberto da Cunha Melo
08/04/1942 – 13/10/2007




Alberto da Cunha Melo ou José Alberto Tavares da Cunha Melo – este seu nome completo – é neto e filho de poetas. Em 37 anos de seu fazer literário – seu primeiro livro Círculo Cósmico foi lançado em 1966 – Alberto publicou doze títulos de poesia e participou de vinte e três antologias, duas delas internacionais, todas inseridas na bibliografia ativa deste trabalho monográfico para que se ratifique mais precisamente esta nossa anotação. Ele também mereceu uma boa recepção da crítica literária pernambucana e nacional, a exemplo de nomes como César Leal, Fábio Lucas, Hildebrando Barbosa Filho, Bruno Tolentino e o prefácio consagrador, especialmente para o mundo acadêmico, do professor Alfredo Bosi (2000), em seu livro Yacala (MELO, 2000), na segunda edição fac-similar da editora EDFURN, que atravessou as fronteiras brasileiras e foi lançado na cidade de Évora, em Portugal, durante o III Seminário Internacional de Lusografias.

Um jovem pernambucano, nascido em berço de poesia, une-se a um grupo de amigos também poetas para discutir o fazer poético. Na paisagem parda e acre do subúrbio, sob todas as indigências, procurava as bibliotecas públicas para se informar sobre os mestres da arte poética. Um processo reflexivo contínuo pautava o seu percurso literário.

Toda obra de Alberto da Cunha Melo é um ato de amor, num mundo de não-amor, um mundo que se nega à comunhão com a beleza, com a arte. É, portanto, um ato de amor e “resistência”.  Seu poético-noemático, a beleza sob a empática convivência da razão, se envida na poesia-metalinguagem, na poesia-mito, na poesia-sátira, caminhos da “resistência.

No caminho da poesia-metalinguagem, também a resistência à retórica baseada em modelos acabados, mas um sim à retórica da busca no seu modo particularmente agudo de sentir, pensar e de fazer. Nas sendas da poesia-mito, o encontro com a Natureza não contaminada pela barbárie, e com a infância já ferida por ela: “Infância doce, infância dura/ infância de cana 3X, a marca pobre que apodrece/ a dentadura das crianças”. (MELO, 1989, p. 34). Uma poesia-mito que representa o estágio mais denso do seu lirismo atento e comovido diante do que não é ainda consciência: bichos, plantas, pedras povoam a obra de Alberto da Cunha Melo e se incorporam e se abrigam em seu discurso. “O pardal tem a cor do sujo,/ da poça d’água do caminho,/ dos pés descalços pelas longas/ beiras de estrada, passarinho/ sempre a viver ao rés do chão/ como o mendigo ou o enxergão/[...]” (2002, p. 137). Na poesia-sátira, o contundente discurso de uma consciência que se recusa ao não-amor, pelo aparente desamor. E sob as mais dolorosas injunções do seu tempo, a construção da poesia-utopia, invocando o futuro, em solidária resistência social: “És tão pouco, tão pobre,/ tão nada,/ como chegaste até aqui?/ Todos esperavam receber,/ pelos ruídos que vinham do Nordeste,/ alguma coisa coletiva/ e numerosa,/ alguma cerca majestosa./ Mas, chegaste,/ criatura despedaçada,/ uma após outra,/ no teu humilde/ e poderoso chegar.” (MELO, 1979, p. 26).

A poesia de Alberto da Cunha Melo se funde em todos os tempos do lírico – passado-presente-passado; passado-presente-futuro, em seu grito avesso aos caos. Uma poesia-resistência. Resistência que “acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela” (BOSI, 2000, p. 227), bem distande das ideologias dominantes, transubstanciada nos poemas que encurtam a distância entre os seres, como toda grande Arte.


(In Faces da resistência na poesia de Alberto da Cunha Melo : geração 65 da literatura pernambucana / Cláudia Cordeiro. – Recife : Bagaço, 2003)



*Cláudia Cordeiro é professora de literatura brasileira, ensaísta, palestrante e Webdesigner








POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, FREDERICO SPENCER, DOMINGOS ALEXANDRE, CÍCERO MELO E ALBERTO LINS CALDAS






Traduzir-se pássaro
Natanael Lima Jr

           ao poeta Frederico Spencer


        “uma parte de mim é multidão
        outra parte estranheza e solidão”
                                                          
                         (FERREIRA GULLAR)


 
Imagem: Reprodução

















voo
como pássaro
na imensidão do vasto
cosmo
em mim, nuvens
corações que pulsam
na expectativa
do destino
enquanto pássaro
frenéticos passos...

traduzir-se pássaro:

passado
           presente
                       futuro





Cantiga do Capibaribe
Frederico Spencer



Imagem: Reprodução













Sonhou-se um dia
sobre tua pele, n(aves) deslizariam
e ao trabalho te darias:
carne para os pobres - lazer
para os ricos flamejantes - espigões
em tua periferia brotariam
e em cada janela corpos nus cantariam:
 - muitos homens como chão te sonharam
 outros qual amante
 resgatariam sonhos de feudo
 e se transbordariam do meu efêmero líquido
e durante a noite, no teu canto
úmido acalentaria a sede das sedes
como panos mornos
sobre a cidade ofegante.
Hoje à pátina, nesta tela:
a libido proibida, contraído sexo
para não morrer, recusa
a escusa do limbo escaldo dos engenhos
que movem os homens da cana-de-açúcar:
em teus pulmões de espuma
a viagem intransitável em teu ser.




Bruxelas
Domingos Alexandre

        
        A Esman Dias




Imagem: Reprodução

















Escurecia e o dia era tão frio
que cada rua era um desvão sombrio
e nossos passos pelo calçamento
num compasso de mudo desalento
soavam como fuga para o Eterno
ante o cerco sem fim daquele inverno.
As pessoas envoltas em seus mantos
passavam numa profusão de espantos
perdendo-se, de vez, por trás dos muros
em busca de lugares mais seguros
e o céu baixava com indiferença
a nublada carranca. A noite imensa
sem coorte de estrelas e sem lua
caía bruscamente sobre a rua.
E eu seguia sem rumo e sem saída
na noite que inundava minha vida.

Sob os arcos de um velho monumento
gemia um vagabundo sonolento
e o vento uivando para todo lado
passava como um lobo esfomeado.
Naquela noite minha solidão
se arrastava ao meu lado como um cão
que embora exposto à dor e ao abandono
se recusava a abandonar o dono.
E eu, desterrado e, ali, vagando a esmo,
carregando esse espectro de mim mesmo,
caminhava sob a garoa fria
que doía nos ossos e feria
com as pontas dos dedos o meu rosto
aumentando-me a chaga do desgosto
numa Bruxelas para sempre hostil,
a centenas de léguas do Brasil.

Há um momento em que, longe de casa,
o homem pensa em tudo que lhe abrasa
o coração, repensa toda a vida
e vê como cresceu sua ferida,
como tudo fugiu e quase nada
lhe resta do que amealhou na estrada,
vê como até o amor naquela hora
é só lembrança do que foi, outrora,
o verde imaculado da esperança;
é poeira dos passos de uma dança,
que há muito se acabou e no salão
deixou apenas ecos da canção.
Percebe, então, que em cima de tudo isso
a noite tomba no auge do seu viço
lançando um gosto amargo de derrota
nessa vida que aos poucos se desbota.
Mas não pode fugir: o tempo é escasso
(a morte nos espreita a cada passo)
e essa mesma Bruxelas que o assedia
é toda sua vida fugidia,
tudo que ele viveu ou não viveu
e para sempre, agora, se perdeu.
Vê que a dor é sem fim e que no mundo
nos envolve segundo por segundo.
Mesmo assim ele arrosta a chuva fria
de uma cidade estúpida e sombria
desemborca seu barco, enfuna as velas
e se perde na noite de Bruxelas.





A última cidade invisível
Cícero Melo


Imagem: “As cidades invisíveis” de Ítalo Calvino
Vistas por Nora Sturges













Mas, além das cidades invisíveis,

Ó Ítalo,
Que te descrevi,
Havia mais uma
Fora das muralhas do teu reino.

Seu nome era Escuridão.

Lá, as conchas do tempo
Adormeciam os ossos
Das estrelas.



Poemas
Alberto Lins Caldas


Imagem: Reprodução












*
● migalhas de gozo ●
● queremos mais ●
● q migalhas de gozo ●

● isso q torna e transtorna ●
● todos esses corvos ●
● em animais do trabalho ●

● ?pra q asas ?pra q garras ●
● ?esse bico afiado pra q ●
● ?a lingua o sonho pra q ●

● queremos o gozo inteiro ●
● e tudo do gozo e gozar ●
● esse alem do prazer ●

● esse alem do salario ●
● alem da casinha alem ●
● da cidade alem de tudo ●

● isso carne isso terra e ja ●
● isso tudo isso agora e ja ●
● isso q é nosso agora e ja ●

● o gozo o gozo inteiro ●
● isso de bem gozar o gozo ●
● isso sempre alem e ja ●


*

● aproveite tudo q surge ●
● goze esse tempo livre ●

● não apague a luz ●
● deixe a torneira fechada ●

● não esqueça a comida ●
● do gato e dos cães ●

● desligue o ventilador ●
● lembre de fechar o gas ●

● abra as janelas e as portas ●
● deixe o vento correr ●

● passe uma vassoura ●
● nos quartos e na sala ●

● depois pode descansar ●
● na poltrona ou na cama ●

● livros não faltam ●
● mas a paisagem é melhor ●

● a despensa ta cheia ●
● não esqueça de comer ●

● depois e cansado ●
● pode vasculhar as gavetas ●

● vc gostara do guarda roupa ●
● e embaixo do colchão ●


● no mais é descansar e dormir ●
● deixar o tempo passar ●

● por fim pra não esquecer ●
● ponha no lixo as flores mortas ●

● depois chame a policia ●
● pra recolher nossos corpos ●


*

● sempre sobre cavalos mortos ●
● empilhados dessa maneira ●

● como se fossem pedras ●
● e sacos molhados de areia ●

● sacos de carne podre q fervilha ●
● e escorre pelas calçadas ●

● porisso não ha inverno nem volta ●
● e tudo sera nesse longo verão ●

● é verdade q ha a mira e o alvo ●
● ?mas quem não é alvo na vida ●

● agora o sangue podre dos cavalos ●
● as ruas pontuadas pela dor ●

● depois riremos na dança ●
● ao redor dos corpos dos cavalos ●

● esses cavalos q somos nos mesmos ●
● depois dessa longa servidão ●


*

● voltar depois dessas ilhas ●
● desses amores tão brutos ●
● depois de tanto sangue ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● ver quem foi visto jovem ●
● e agora dobra se de dor ●
● e se veste pra morte enfim ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● nem o olhar nem a carne ●
● apenas a perfeita presença ●
● isso q sempre falta assim ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● q adianta tecer e não poder ●
● destecer o desejo esse gozo ●
● sempre adiado pra nada ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● tem apenas cicatrizes ●
● e esse corpo perdido antes ●
● não sabe mais nem pra q ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● sem arco sem espadas ●
● sem nenhum dos navios ●
● apenas esse q não quer ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● perverso deus esse aqui ●
● sempre entre todos nos ●
● e rindo nos matadouros ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● erva daninha danou se ●
● esse dano irreversivel ●
● esse sol esse soul esse ar ●

● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●

● isso q não e não mesmo ●
● esse pano esse vamos ●
● isso moi isso doi demais ●


● !sim ●
● esse voltar se torna cruel ●






Diga aí!

“Temos tanta pressa de fazer algo, escrever, amontoar bens e deixar ouvir a nossa voz no silêncio enganador da eternidade que esquecemos a única coisa em relação à qual as outras não são mais do que meras partes: viver.” (Robert Louis Stevenson – Escritor)



Diga lá!
“Sempre que a moralidade baseia-se na teologia, sempre que o correto torna-se dependente da autoridade divina, as coisas mais imorais, injustas e infames podem ser justificadas e estabelecidas.” (Ludwig Feuerbach – Filósofo)




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