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Alguma Coisa Acontece...

Douglas Menezes*











  


Caetano e Gil – 1969                                 Sampa



Alguma coisa acontece nos corações e mentes quando um artista reconstrói o desconstruído. Faz do feio aparente, a beleza maior. Tira do lodo ou do feioso cinza, cores irradiando a vida, enxergando um sol amanhecendo naqueles dias em que a poesia parece inundar a existência. Alguma coisa acontece principalmente nos corações, quando o que poderia ser despoetizado pela evidência de um ambiente insalubre, não só feio, como até mesmo grotesco, poluído, desumano, incolor, artificial, violento, medroso. Alguma coisa acontece, principalmente nos corações, quando o que poderia ser despoetizado se torna a mais genuína expressão de conteúdo poético, pura busca de humanizar o desumano.

 “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João”. Caetano Veloso consegue fazer do concreto paulista, um jardim inimaginável de poesia para São Paulo. Torna humana cada fealdade expressa. Põe virtude nos defeitos cantados e comuns a todos que conhecem aquela selva. Uma verdadeira compaixão, como se tivesse pena das coisas ruins que habitam Sampa, e encontrasse nelas o sumo da vida, o adubo necessário para se construir uma humanidade. Como se a torre de babel finalmente vislumbrasse uma linguagem única, irmanando a todos, de todas as raças e idiomas, numa só nação.

Caetano consegue musicalizar São Paulo no próprio título do poema. O samba que representa a redenção. O desfilar na melodia perfeita para o objetivo proposto. Tornou a música, simples por sinal, numa narrativa que é um roteiro para quem chega a São Paulo e sente o choque de realidade, muitas vezes tão cruel que leva o indivíduo desavisado a sucumbir e se transformar em mais um ser marginalizado na cidade grande. Um roteiro, também, para aqueles que resistem, tiram o manto do preconceito, e, a duras penas, se adaptam, começam a viver a  urbe gigantesca nos aspectos do bem, sem esconder a realidade dura, mas enfrentada pelos grandes vencedores. Não esquecendo as contradições, muitas, as dificuldades do provinciano num mundo universal: “E foste um difícil começo afasto o que não conheço/ e quem vem de outro sonho feliz de cidade / aprende depressa a chamar-te de realidade/ porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”.

Em Sampa, a sensibilidade social, a disparidade de renda, a opressão aos mais pobres, a importância de dinheiro, necessário e também destruidor: ” Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”. E o arremate crítico, politicamente correto com preocupação ambiental: “Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas”. E a referência do concreto paulista à concretude da poesia: “E vejo surgir teus poetas de Campos e espaços”.

Mas São Paulo é, ao mesmo tempo, a meca dos que desejam progredir, dos que não tiveram chance em suas terras. Simboliza a liberdade, o novo quilombo, a chance na vida. E Caê não deixou de observar isto.

O roteiro termina de modo lânguido, carinhoso, num reconhecimento de que Sampa é humana e habitável para quem nela consegue ir além da sobrevivência. Poesia de um poeta maior: “E os novos baianos passeiam na tua garoa / E os novos baianos te podem curtir numa boa”.



*Douglas Menezes é escritor, professor de Língua Portuguesa, pós-graduado em Literatura Brasileira e em Leitura, Compreensão e Produção Textual pela UFPE, membro da Academia Cabense de Letras.




POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, LUCILA NOGUEIRA, ANTONIO DE CAMPOS, FREDERICO SPENCER E VILMA DUARTE

 



Lembrança Partida*
Natanael Lima Jr (PE)


ah amigo!
essa saudade é que não passa
e os nossos sonhos irrevelados
em cada canto da casa
ainda pulsam de emoção

ah amigo!
essa dor é que não passa
e a madrugada posta sobre a mesa
embriagada partiu sem cor
solitária e sem amor

ah amigo!
a lembrança partida é o que restou,
a vida é desse jeito...
despreza e ampara
afaga e depois maltrata

e continua o sonho pra sempre
na lembrança,
na saudade
e na dor

*Poema inspirado na canção “Asa Partida” de Raimundo Fagner, 2011.



Feminina/Masculina*
Lucila Nogueira (PE)


a parte feminina de Che Guevara
a parte masculina de Virginia Woolf
a parte feminina de Garcia Lorca
a parte masculina de George Sand

a parte feminina de Hemingway
a parte feminina de Shakespeare
a parte feminina de Fernando Pessoa
a parte feminina de Rimbaud

a parte masculina de Greta Garbo
a parte masculina de Sylvia Plath
a parte masculina de Florbela Espanca
de Cecília e Clarice de ti e de mim

*do livro “Mas não Demores Tanto”




Mas Profundo que o Céu
Antonio de Campos (PE)


São alcovas os meus olhos
às estrelas que à noite se amam
e cadente vêm a mim
descansar de tanto amor –

mais profundo que o céu
é o mar do coração,
a quem pede o sol da claridade.



Abril Eldorado*
Frederico Spencer (PE)


Num abril um eldorado
abria-se em flor de sisal e estanho
sobre a terra encharcada de vermelho
repousaram sementes alteradas
de ferro e sangue.
Inciso na boca dos homens
- transeuntes de sonhos –
o grito ecoou na dor
em Eldorado dos Carajás.
Reféns do destino e das reformas
agrária morte os esperava:
estampidos demarcaram
os pedaços que lhes faltavam.

*do livro “Abril Sitiado”




Espera*
Vilma Duarte (MG)
http://www.vilmaduarte.mayte.us


Dar-te-ia minha alvorada,
E acordaria mulher outra vez
e mais...
O sol
O pôr do sol
As estrelas
A Lua
A Poesia
A cama
E minha solidão
nua....

*recomendado a sua postagem por Ronan Drummond.





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