TransWinter

Uma Légua Nem Tão Tirana


Douglas Menezes*











Ele não está mais aqui, mas o sol continua testemunhando a agonia do seu povo. Uma dor sem fim que os homens que podem não acabam nunca. Dá lucro a inclemência natural para os donos de gado e gente. Dá voto e prestígio o sofrimento do sertanejo. Tão seca a Palestina. Tão seco Israel e eles resolveram a escassez de água. Tirana e infinita essa légua sertaneja. O poeta, no entanto suavizou a angústia trágica de séculos: “Ah que estrada mais comprida,/ Ah que légua tão tirana; / Ai se eu tivesse asas inda hoje eu via Ana”. Amor onde poderia apenas haver o ódio. Lua, em outro espaço, deve estar chorando a repetida tragédia de sua gente. Manchete sem graça: “a pior seca dos últimos cinquenta anos”. Grande artista é aquele que ultrapassa, com sua obra, o tempo presente e ingressa no futuro. Nesse aspecto, é triste a atualidade do cancioneiro de Luiz do Exu. Quisera ele, com certeza, que parte de sua música fosse apenas lembrança de um passado que não voltasse mais.

Não é bem assim, porém. Entretanto, o mestre faz da dor um rasgo de esperança e de confirmação que o místico ajuda a amenizar a agonia de todo um povo: “Quando o sol tostou as foias/ E bebeu o riachão / Fui inté ao Juazeiro/ Pra fazer a minha oração”. É como se o sofrimento fosse tão-somente um modo de expiar os pecados. Não há um mínimo de revolta contra o divino. O esgotamento traz, na verdade, a grandeza de quem sofre sempre tudo e não perde a condição de humanismo e bondade: ”Tou voltando estropiado / Mas alegre o coração/ Padim Ciço ouviu a minha prece/ Fez chover no meu sertão”. Uma légua cuja tirania é desconstruída a favor de uma visão otimista. A concepção de que a vida vale a pena viver, apesar de tudo de ruim que os próprios homens fazem. Talvez não seja bom esse conformismo conservador, mas não deixa de ser um exercício de que a humanidade tem salvação.

É por isso que existe poesia. Para que creiamos num mundo possível, mais feliz e solidário. O poeta crê no homem, até mesmo quando o expressa o mais profundo pessimismo. Há, na Légua tirana do Lua uma confirmação de que a estrada da vida é tortuosa e longa, todavia com um vislumbrar de se atingir algum lugar como objetivo: “Varei mais de vinte serras/ De alpercata e pé no chão/ Mesmo assim, como ainda farta! / Pra chegar no meu rincão”.

Gonzaga, então, modifica o sentido da palavra “tirana”. Põe um bálsamo sobre a aridez original do vocábulo. Tirana: opressora, déspota, ruim, desumana, ditadora, violenta. A tirania do rei é leve para o homem. O eu-lírico sofre, cansaço atroz que, no entanto, não atinge as pessoas, necessitadas de algo leve,  criando a ilusão de um sol menos inclemente, de uma existência pouco sofrida. O final arrebata, na singeleza dos versos, essa concepção de cantiga de ninar, alguma coisa que faz dormir e sonhar, como um céu de estrelas, como uma chuva fazendo brotar a fartura: “Trago um terço pra Das Dores / Pra Reimundo um violão / E pra ela e pra ela trago eu e o coração”.



*Douglas Menezes é escritor, professor de Língua Portuguesa, pós-graduado em Literatura Brasileira e em Leitura, Compreensão e Produção Textual pela UFPE, membro da Academia Cabense de Letras.





POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, FREDERICO SPENCER E DORALICE SANTANA




Efêmeros*
Natanael Lima Jr


Efêmeros,
o sentido perdeu o sentido
e a vista não avista
além do vasto.


*Poema classificado entre “os cem melhores poemas do prêmio TOC140”, poesia no twitter da Fliporto 2010.




Noturno*
Frederico Spencer


Talvez dessa noite
herde o poema que espreitou o dia.
Nesta noite
que me mantenho oblíquo: farol,
deste mar de horas e solidão
assisto o vai-e-vem de elegias
                                      e reinvenções:
versos antigos se reeditam, saltam
da escuridão buscando luz e forma.
Talvez desta noite
o poema nasça
libertando o amanhecer.


*do Livro “Quadrantes Urbanos”, 2006.




Pescador*
Doralice Santana


Pesca a dor
Que nada em mim
Joga a rede
Lança a sorte
De puxar
Do meu coração
A dor
E a ferida
E o arranca
Junto
Para que eu
Não venha
Mais a chorar.


Praia de Candeias, 1998.

*do Livro “Do Amar e outros Versos”, 2011.


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