O ESCRITOR JOÃO NUNO AZAMBUJA COMENTA SOBRE O LIVRO “ENSAIO SOBRE A CANÇÃO ÁRIDA”
Postado por DCP em 06/02/2023
Bruto
e cru como a natureza indelicada e inocentemente honesta, assim é o poeta, sempre
virgem, “estrangeiro do próprio corpo”. O poema é saudável e doentio,
alimenta-se de tudo, “alimenta-se de paisagens e de metáforas abrasadas”,
neste instante, aqui e agora, como a água que corre.
No
prefácio do livro “Ensaio sobre a canção árida”, de Natanael Lima Jr., Maria de
Lourdes Hortas escreve: “Desejo que este livro desassossegue, levando à
dúvida, à incerteza, ao mistério”. Que desejo é este que se pede para
nós? É como se a poesia fosse a antítese da vida prática, porque na vida
desejamos certezas que nos guiem num caminho a direito rumo ao que já
antevemos. Só que Maria de Lourdes Hortas sabe que a poesia não antevê:
constrói sem plano nem projeto a torre de Babel, baralha-nos o
entendimento quando aspirávamos ao céu. É um sonho que nada nos explica,
antes nos confunde, é a palavra indizível, precisamente o título de um poema
na Canção Terceira, em que a palavra vai percorrendo um trilho até criar
máscaras, inexistências, transgressões.
Neste
livro, Lima vadiou livremente por várias formas de escrever, lembrando
até, nalguns versos, a “Serenata sintética” de Cassiano Ricardo, arrogando-se
a grafismos experimentais que obrigam a uma leitura atenta, jogando com as
palavras como se as jogasse contra a fantasia: o abalo sísmico começa com o
cismo do abalo. Como criança imitando à sua maneira a realidade, Lima
brinca com o dia a dia cozinhando o poema com fermento da terra até o
servir gelado. Corajoso — ou melhor, temerário — o poeta mergulha numa
aventura da qual desconhece o efeito, e só por isso mergulha: “O
poema sempre é um risco…”, sendo este risco um salto no escuro, uma marca
no papel ou o itinerário traçado no mapa do sonho.
Até
que no fim, enigmático como Pedro negando a vida inteira encarnada em
Jesus, é negada a poesia até setenta vezes sete vezes. Talvez porque a
poesia é o que se vê no preciso momento de uma experiência. Vergílio, no
fabuloso verso da “Eneida”, diz que “há lágrimas nas coisas, e tocam o
coração dos mortais”. Pleno de imagens, “Ensaio sobre a canção árida”
deixou- me uma na retina: “… o tempo abrasado lavra a dor”.
Braga,
4 de fevereiro de 2023.
*João Nuno Azambuja nasceu em Braga, Portugal. É licenciado em História e Ciências Sociais. Militou nas tropas paraquedistas após um período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta. O seu primeiro romance, “Era uma vez um homem”, ganhou o Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Em 2018 publicou “Os Provocadores de Naufrágios”, e em 2019 saiu o romance “Autópsia”. “Era uma vez um homem” foi levado ao teatro e reeditado em 2021.

Belíssimo e poético comentário.
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