EVOCAÇÃO DE TERÊZA TENÓRIO (*) (1949-2020)
Por
José Rodrigues de Paiva*
Foto: Reprodução
Francisca
Terêza Tenório de Albuquerque não é, para mim, apenas um dos nomes
exponenciais da “Geração 65” de poetas e prosadores pernambucanos que neste ano
[2015] está completando meio século: Terêza foi minha contemporânea no curso de
Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Não éramos colegas de turma,
porque, mais velho do que ela, eu estava dois ou três anos à sua frente no
curso, mas a literatura aproximou-nos e ajudou-nos a construir uma boa amizade.
Daquelas que se leva pela vida afora sem nada pedir em troca, sem nada querer
um do outro a não ser o bem de cada um. Terêza lia as minhas coisas acabadas de
sair da máquina de datilografia, eu lia os seus poemas antes de seguirem para o
“crivo” do poeta César Leal, então
editor, com Marcus Antônio do Prado,
do Suplemento Literário do “Diario de Pernambuco”. Ela e eu, assim como os
demais integrantes do grupo de jovens aspirantes à literatura, esperávamos
ansiosamente pelo jornal de domingo, que era a festa de vermos se vínhamos ou
se vinha algum dos nossos amigos estampado em letra impressa nas páginas de
grande tradição literária mantidas pelo “jornal
mais antigo em circulação na América Latina”. Éramos todos muito jovens e o
sonho era maior do que a realidade.
Quando recebi de Anco Márcio Tenório Vieira o convite para falar sobre Terêza Tenório fiquei contente por se
me apresentar a oportunidade de, mais uma vez, escrever sobre a sua poesia.
Depois percebi que não seria fácil, porque sempre a pessoa da poeta, ou as
lembranças que tenho dela, se presentificavam entre a poesia e o crítico e a
tentação de evocar a pessoa era mais forte do que a disciplina e a objetividade
de estudar a complexa e por vezes estranha poética de Terêza. Mas a razão
dizia-me (e diz-me) que na Academia as obras interessam mais do que os seus
autores e eu viria aqui falar para universitários que já aprenderam que o
biografismo é secundário quando se trata de analisar obras literárias.
Entretanto, a presença de Terêza era muito forte para que eu a pudesse
abstrair. Ela está em cada um dos seus poemas e às vezes fala mais alto e mais
forte do que a voz dos seus versos. A alegria esfuziante de Terêza, ou a sua
melancolia disfarçada em riso é uma lembrança persistente que não se arreda do
poema. A sua beleza também. Ela era chamada por alguns dos nossos de “a musa da
Geração 65”. Terêza foi uma jovem mulher que sabia cultivar não só os dotes da
inteligência, mas também os caprichos da elegância e da desenvoltura que eram
suas e com as quais se apresentava sabendo valorizar os perfis de corpo e rosto
e de brincar com um sorriso constante, às vezes irônico, às vezes zombeteiro,
talvez por estratégia de defesa contra algum imperceptível traço de timidez.
Tinha, sem dúvida, alguma coisa de esfíngico e de misterioso que muito bem
soube passar para a sua poesia. Na vida prática, oscilou sempre entre os fortes
apelos da criação poética e a aprendizagem feita em códigos e obras
doutrinárias da ciência jurídica. Terminado o curso, Terêza enveredou pela
profissão de advogada, integrando o departamento jurídico da Celpe (Companhia
de Eletricidade de Pernambuco), mas nunca personificou a sisudez que
frequentemente caracteriza os profissionais do direito. Pelo contrário:
continuou manifestando os traços desenvoltos da sua personalidade marcada por
expansões de alegria, sempre sorrindo, sempre demonstrando entusiasmo, sempre
ironizando finamente a vida e as suas circunstâncias, e, sobretudo, sempre
escrevendo a sua poesia, participando de recitais e de lançamentos de livros,
sempre performática como era do seu espírito.
A certa altura da vida Terêza Tenório decidiu fazer aqui, na
UFPE, o Mestrado em Teoria da Literatura. Não o concluiu. Faltou-lhe talvez,
diante dos apelos da criação poética, a disciplina que teve de sobra para o
exercício do direito sabendo aí separar a vida profissional da vida artística.
Penso que, aluna do Mestrado em Teoria, não conseguiu harmonizar o universo
teórico da literatura com a sua inclinação profunda para a criação literária.
Terêza talvez tenha levado demasiadamente a sério uma frase de Goethe que César Leal repetia constantemente nas suas aulas e nas suas
conversas. A frase pertence a um diálogo entre Mefistófeles e Fausto, é
dita pelo primeiro ao segundo e afirma o seguinte: “Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde a árvore dourada da
Vida.” É claro que a “teoria”, aqui, nada tem a ver com a Teoria da
Literatura, ou César Leal jamais pronunciaria
essa frase. A “teoria” seria o pensar, o teorizar, o produzir exigente de um
recolhimento que se opusesse ao viver.
Os estudiosos de Goethe dizem que a frase representa um traço da filosofia de vida
do grande romântico alemão. Não penso que Terêza a tomasse ao pé da letra e que
ela a tenha incompatibilizado com a Teoria da Literatura, o que a
incompatibilizou foi, provavelmente, o choque entre a “teoria” e a “práxis”
poética. E esse “choque” efetivamente existe em muitos casos (e aí me incluo) entre
os que, dedicando-se à poesia ou à ficção, resolvem enveredar também pelos
estudos da Teoria Literária. Nos casos mais sensíveis, a aprendizagem da Teoria
parece inibir o criador literário. Sobre isto atrevo-me a dar um depoimento
pessoal: na minha juventude desejei ser escritor, interessando-me a poesia, o
conto e a crítica literária; quando ingressei no Mestrado, em 1977, passei a
não ter muito tempo para a poesia e o conto porque todo ele era destinado às
leituras específicas e à produção dos trabalhos acadêmicos (além de ter de
prover a sobrevivência familiar, claro); quando, em 1981, concluí e defendi a
dissertação sobre Vergílio Ferreira
senti-me esvaziado e muito tempo se passou sem que eu pudesse voltar à poesia
ou ao conto. Hoje, quando olho para a relação das coisas que escrevi, percebo
que o ensaio de crítica venceu os poemas e os contos. Terêza poderá ter
antevisto algo parecido e resolveu afastar-se da Teoria Literária (que não tem
nada de cinzento) para privilegiar a sua poesia. Optou pela árvore dourada da
sua poética enquanto o verdor da vida lhe permitiu. Infelizmente, esse verdor
murchou precocemente (transformou-se em cinza) calando a voz e a escrita da
grande poeta que ela era. Continua a sê-lo na obra que produziu, mas poderia
ter realizado muito mais.
A última vez que vi Terêza Tenório foi no ano 2000, no hall
do Centro de Artes e Comunicação, onde, juntamente, com vários professores da
Casa e de outras universidades brasileiras e portuguesas eu participava da
abertura de uma exposição iconográfica sobre Eça de Queirós, de quem, então, se celebrava os 100 anos da morte.
A exposição chamava-se “Eça de Queirós:
marcos biográficos e literários (1845-1900)” e integrava as atividades do
Colóquio Internacional denominado “Eça
entre milênios: pontos de olhar”. Durante a alocução de abertura da
exposição, feita pela professora Isabel
Pires de Lima, Terêza surgiu no meio de nós, visivelmente emocionada,
dizendo a mim e a Lucila Nogueira,
que vinha despedir-se, que estava indo a São Paulo levada por um problema de
saúde. Não deu maiores explicações. Abraçou-nos chorando, a Lucila e a mim,
disse que nos amava muito e saiu, deixando-nos absolutamente perplexos. Desde
esse dia nunca mais a vi. Soube muito depois que tipo de terrível doença a maltratava
de forma cruel. Terêza está viva, mas é como se já não estivesse porque não
pode mais estar entre nós.
Foto:
Reprodução
O poeta e cronista José Mário Rodrigues publicou
recentemente na página “Opinião” do Jornal do Commercio, um comovente artigo em
homenagem a Terêza. Intitulou-o “Chama
que se esvai” e escreveu assim o primeiro parágrafo:
"Ela
ainda está viva, melhor dizendo, gravemente viva. Naquele estágio de quase
morta. Visitá-la, não tenho coragem. Melhor ficar com a imagem da mulher
bonita, excelente poeta, comunicativa e dona de um belo sorriso. Há mais de dez
anos que adoeceu. Tanto tempo fora de cena, alguns pensaram que ela estava em
outra esfera: a do esquecimento, que Manuel Bandeira definiu muito bem 'morrer
mais completamente ainda / sem deixar sequer esse nome'.”
O cronista dá prosseguimento ao seu
texto revelando a identidade da homenageada:
"Integrante
da Geração 65, estreou com o livro Parábola. Seus primeiros poemas foram
publicados no JC e Diario. Estou me referindo a Terêza Tenório. Publicou também
no México, na Itália e até na Coréia do Sul. Segundo o poeta e crítico César Leal, a poesia de Terêza 'se
caracteriza por uma fuga ao lugar comum, aos velhos processos expressivos, sem,
contudo, chegar ao extremismo das vanguardas mais sofisticadas'. Elegeu o amor
como força maior, 'amor candelabro aceso dentro da sombra'. E viu que 'É
preciso saber amar o silêncio / para não se perder do Senhor do Tempo'.”
Terêza seria artista de qualquer
maneira. A arte era o caminho da sua vocação. Antes da poesia tentou a pintura
e o desenho. Nunca fez (que eu saiba) nenhuma exposição, mas eu cheguei a ver
alguns trabalhos seus. Depois encontrou a literatura e particularmente a
poesia, mas incursionou também pelo conto. Creio que não chegou a publicar
nenhum, mas eu li alguns dos seus textos em prosa nos quais ela representava
ficcionalmente um estranho mundo, como ocorre, também, em vários dos seus poemas.
Vão sendo horas de concluir esta
evocação da pessoa de Francisca Terêza
Tenório de Albuquerque e dizer alguma coisa sobre a sua poética, para
melhor tentar cumprir, academicamente, a tarefa alegre e triste que me coube.
Só ainda uma última coisa de ordem pessoal a respeito do seu prenome composto:
certa vez, conversando comigo na Universidade, Terêza disse-me que estava
procurando, no seu nome, qual a composição ideal para assinar os seus poemas.
Como se chama Francisca Terêza, eu disse-lhe em tom zombeteiro que poderia ser
“Chica Têca”. Ela poderia ter ficado aborrecida com a brincadeira, mas, sorriu
o sorriso de sempre e no dia seguinte trouxe-me um poema e um desenho
assinados: “Chica Têca”. Era assim a Terêza que eu conheci.
E por fim, José Mário Rodrigues encerra a sua crônica com uma pequena
antologia de versos de Terêza Tenório:
Aproveito o espaço para homenagear
essa bela poetisa que aguça a minha sensibilidade e a de quem conhece os seus
livros: "O círculo e a pirâmide", "Mandala", "Noturno
selvagem", "Poemaceso" e "Corpo
da terra". Eis um caleidoscópio de alguns dos seus versos: “Não morrerei de amor enquanto exista / todo
o mar que se estende até a lua.” “O poema é um rio / que me flui através do
corpo.” “O meu amor inundará o tempo / e sobreviverá a Tróia, aos deuses, / ao
meu nome e a teu nome.” “O silêncio nos envolve como labirinto.” “Os vivos
carpem o Morto / em ritmo lento / Entoam cantos rituais /e mordem o vento.”
“Deixei muitos sonhos inacabados.” “Muito longe, um sino dobra tristeza / eu me
pergunto se há alguém alegre no mundo.” “Deixei-me ao lado do alto muro.”
Terêza seria artista de qualquer
maneira. A arte era o caminho da sua vocação. Antes da poesia tentou a pintura
e o desenho. Nunca fez (que eu saiba) nenhuma exposição, mas eu cheguei a ver
alguns trabalhos seus. Depois encontrou a literatura e particularmente a
poesia, mas incursionou também pelo conto. Creio que não chegou a publicar
nenhum, mas eu li alguns dos seus textos em prosa nos quais ela representava
ficcionalmente um estranho mundo, como ocorre, também, em vários dos seus poemas.
Vão sendo horas de concluir esta
evocação da pessoa de Francisca Terêza
Tenório de Albuquerque e dizer alguma coisa sobre a sua poética, para
melhor tentar cumprir, academicamente, a tarefa alegre e triste que me coube.
Só ainda uma última coisa de ordem pessoal a respeito do seu prenome composto:
certa vez, conversando comigo na Universidade, Terêza disse-me que estava
procurando, no seu nome, qual a composição ideal para assinar os seus poemas.
Como se chama Francisca Terêza, eu disse-lhe em tom zombeteiro que poderia ser
“Chica Têca”. Ela poderia ter ficado aborrecida com a brincadeira, mas, sorriu
o sorriso de sempre e no dia seguinte trouxe-me um poema e um desenho
assinados: “Chica Têca”. Era assim a Terêza que eu conheci.
Quanto ao que dizer sobre a sua
poesia, começo por me socorrer de uma citação de César Leal feita por José
Mário Rodrigues na sua crônica “Chama que se esvai”. Diz César, citado por
José Mário: a poesia de Terêza “se
caracteriza por uma fuga ao lugar comum, aos velhos processos expressivos, sem,
contudo, chegar ao extremismo das vanguardas mais sofisticadas”. Que “lugar
comum” e que “velhos processos expressivos” seriam esses a que César Leal se
referia? Um dos lugares comuns a uma grande parte dos integrantes da Geração 65
nas primeiras horas era a eleição de João
Cabral de Melo Neto como modelo e fonte de inspiração. Poucos escaparam à
grande e condicionadora força que a poesia cabralina exerceu sobre os poetas
iniciantes dos anos 60 e 70. Terêza escapou. Alguns outros poetas também,
preferindo uma poética da delicadeza, a suavidade do lirismo à maneira de Carlos Pena Filho ou de Mauro Mota à “poesia a contrapelo” da Educação pela pedra ou ao gume afiado da “faca só lâmina”, ou da Escola das facas
ou ainda à poética de “Catar feijão”
ou à secura de Agrestes, que é um livro já dos anos 80. Quanto aos “velhos processos expressivos” seriam,
provavelmente, no pensamento de César
Leal, os traços tardios dos neo-romantismos, neo-parnasianismos ou
neo-simbolismos ainda encontráveis nos poetas da geração de 1945.
Terêza não quis esses modelos para o
seu primeiro livro, Parábola, publicado em 1970. E também não para os que se
seguiriam. Nem a poesia áspera de Cabral, nem os “velhos processos expressivos”. Buscou, desde as primeiras horas,
trilhar um caminho diferenciado daqueles que eram os prediletos dos seus
companheiros de geração. Isso nota-se desde os títulos das suas coletâneas de
poemas: Parábola (1970), O círculo e a pirâmide (1976), Mandala
(1980), Noturno selvagem (1981), Corpo da terra (1994) e Fábula
do abismo (1999). São todos, principalmente os três primeiros e o
último, sugestivos da representação de um universo de mistérios. Quando
passamos aos títulos de alguns poemas, a sugestão acentua-se: “Alfa-Centauro”, “Horóscopo”, “Capricórnio”,
“Parábola”, “Muito além do planeta azul”, “Teorema”...
Todos do livro Parábola. Se passarmos ao segundo livro – O círculo e a pirâmide –
continuamos encontrando essa carga densa de misteriosos símbolos: “A(s) sombra(s)”, “A faca sobre a água”, “Ritual”,
“O triângulo das velas”, “Sânscrito”, “Os lêmures”, “Visões do
Apocalipse”. Assim também nos demais livros e talvez principalmente em Mandala.
Mas eu não vim aqui fazer um inventário dos títulos de Terêza, e passo agora
dos títulos aos textos.
O primeiro livro de qualquer escritor,
seja poeta ou ficcionista, é sempre o da procura de um caminho, de uma
expressão identitária ou estética, de uma escrita que seja ou venha a ser
pessoal e reveladora de um universo de coisas, de uma certa maneira de ver,
sentir e representar o mundo, de um certo modo de ser e de estar na vida.
Quando se lê o primeiro livro de Terêza
Tenório logo se percebe que ela inicia ali esse caminho da busca. Nota-se
que ela não pretende adotar os modelos estratificados escolhidos pelos seus
contemporâneos e conterrâneos, os que viriam a ser seus companheiros de
geração. Não é indiferente ao principal metro poético então adotado, a
redondilha maior, mas prefere o verso mais breve, espartilhado em quatro
sílabas, de enorme contensão. Não quer a prisão das formas fixas, mas não será
indiferente ao soneto. Não pretende a poesia social, muito em moda, na época, e
demonstra o seu gosto por algo que se percebe que reside, em parte, numa
tradição de fazer “literário” algo lateral (para não dizer marginal) e no mundo
das ciências e das tecnologias que ganharam um grande impulso justamente nos
anos de 1960. Refiro-me aos elementos da ficção científica. Com eles Terêza
começou a construir os mistérios da sua poética.
A poetisa pertence a uma geração que
leu, nos romances de Júlio Verne, as
primeiras incursões pela ficção científica e que, nas tardes de cinema, ainda
viu os velhos seriados do herói das viagens espaciais chamado Flash Gordon. A
mesma geração assistiria, em 1968, à superprodução 2001 uma odisséia no espaço
e, em 1969, nos aparelhos de televisão, veria a chegada do homem à lua, e mais
tarde (já maduros, os da geração), outra vez no cinema, acompanharia as
extraordinárias aventuras de Luke Skywalquer, protagonista da série Guerra nas
estrelas inspirado em Flash Gordon.
É evidente que esse mundo que oscilava
entre a ficção e a realidade dos avanços científico-tecnológicos interessou
muito mais a Terêza do que as paisagens de pedras e cactos, a fome e outras
misérias e as injustiças sociais praticadas pelos poderosos contra os sempre
humilhados e ofendidos. Ela não tinha nenhum interesse pela poesia política,
mas sentia-se fascinada pelos mistérios do infinito universo. Daí a escrita de
poemas como “Alfa-Centauro”:
A
paisagem acrílica
de
Alfa-Centauro
evolui
metálica
ante
nossos olhos.
Antiformas
bélicas
de
astronaves mudas
(a
mudez da pedra
gritante
de um Buda).
Antiformas
líricas
de
astronaves puras
(a
pureza fria
de
alvas estruturas).
Antiformas
térmicas
de
astronaves límpidas
(contra
um céu de chumbo
destacam-se
nítidas).
Na
planície densa
de
gases acesos
de
completo caos
surge
um ser coeso.
É
um ser sem alma
de
face mecânica
(produto
arrancado
à
energia atômica).
Manoplas
de aço
inoxidável.
A
cabeça e o tórax
eletronizados.
Mil
computadores
De
urânio e cobalto
testam
a resistência
do
ser automático
e
monstros em série
(pois
tal ser mecânico
é,
em verdade, um monstro)
brotam
no outono.
Outono
sem árvores
ou
folhas caídas
ao
sopro do vento
pelas
avenidas.
Outono
sem chuvas,
sem
sol, sem ocaso,
sem
fruta madura
com
sabor de acaso.
Outono
só fim
túmulo
do verde
das
cores da vida
em
todo planeta.
E
das astronaves
os
seres sintéticos
alçam
voo clássico
com
destino bélico
indo,
céu adentro,
para
a Terra – lívida,
descarnada,
trêmula,
semi-apocalíptica.
A temática
espacial seria recorrente neste primeiro livro de Terêza como atestam os poemas
“Nave”, “Parábola” e “Muito além do
planeta azul”. Do primeiro destes poemas, estruturado em versos de
redondilha maior e na tradicional estrofe de quatro versos, transcrevo
fragmentos do seu início e do final:
Buscando o fim do
Universo
partiu a nau supersônica
forte nave de metal
movida a energia atômica.
partiu a nau supersônica
forte nave de metal
movida a energia atômica.
Grande nave
inconformada
da época espacial
em mil detalhes testada
partiu, e nenhum sinal
da época espacial
em mil detalhes testada
partiu, e nenhum sinal
deixou nos confins
do mundo
da procura entre as estrelas,
na Via Láctea, planetas,
civilizações inteiras.
da procura entre as estrelas,
na Via Láctea, planetas,
civilizações inteiras.
Nebulosas e
asteróides
com estranhas formas de vida,
imensos desertos áridos,
aves de asas partidas.
com estranhas formas de vida,
imensos desertos áridos,
aves de asas partidas.
[...].
Mil mundos de fogo
líquido
e rubra lava fervente
altíssimas atmosferas
planetas incandescentes.
e rubra lava fervente
altíssimas atmosferas
planetas incandescentes.
A mais longínqua
galáxia
de anos-luz de distância
que jamais serão contados
não interrompeu a andança
de anos-luz de distância
que jamais serão contados
não interrompeu a andança
da forte nau
supersônica
de corpo esbelto e maciço
solidamente firmada
em seu rumo no infinito.
de corpo esbelto e maciço
solidamente firmada
em seu rumo no infinito.
Mas nem tudo em Parábola pertence ao universo da ficção científica
mesclada com a realidade científico-tecnológica do século XX. Também a
existencial angústia, que na vida e na morte se manifesta, está presente na
estreia poética de Terêza. E também nem tudo, do ponto de vista da estrutura,
se resume ao verso curto de quatro sílabas ou à redondilha maior. A poeta
demonstra, desde os instantes iniciais do seu trabalho poético, que é capaz de
lidar com o verso longo e de dominar formas fixas, como o soneto e disso
oferece evidentes provas em “Antropofagia”,
“Face amada”, “Soneto” (dedicado à memória de Jorge de Lima) e no belo e doloroso “Tem a lucidez do que é vivo”, este soneto elegíaco que é, sem
dúvida um dos melhores poemas do livro e já um dos mais expressivos produzidos
por Terêza Tenório:
Dorme, meigo irmão, dentro da sombra
neutra, indivisível, silenciosa e úmida
do pranto que choramos
quando, ao longo de tua última hora
seguiste em teu rumo irreversível
sem florestas, sóis, luzes ou enganos.
Somente sombras. Tua espessa alma
ora experimenta sono e calma
o que a nós tristemente é negado
assim como os sinos do teu riso
límpido. Teu rosto no passado
tem a lucidez do que é vivo
e tua rigidez de morto exato
eu a sinto ainda no meu tato.
É sobretudo
com os quatro sonetos incluídos em Parábola que Terêza amplia o leque
temático do seu primeiro livro direcionando-o para outras dimensões. Como, por
exemplo, a morte e o amor que viriam a ser tão fortes elementos na sua lírica.
A poeta caminharia, um pouco mais tarde, para, mais do que uma recorrência, uma
espécie de obsessão ou de desesperada fixação na temática do amor, mas de um
amor amargurado, sem esperança, que não encontra eco nem resposta no grito com
que tenta alcançar o ser amado. Um amor que não é sentido nem ouvido, que não
tem interlocutor, e que por isso se esvai em drama, quase em tragédia.
Se algumas
das antevisões de Júlio Verne e de
outros ficcionistas e cineastas, de Flash Gordon a Guerra nas estrelas, vieram
a pertencer ao domínio do mito, Terêza buscaria, além destes, os de outras
mitologias, desde as clássicas (as greco-latinas), às orientais, germânicas,
eslavas, nórdicas, escandinavas. Terêza encantou-se com esse mundo: de Krishna,
da Cabala,
da Mandala,
da Torah,
do Zohar,
da literatura medieval – com os seus cavaleiros e a busca do Graal –, do
misticismo, do esoterismo, da alquimia, enfim, de tudo o que para a nossa
cultura é principalmente mistério. Não lhe eram indiferentes as lendas dos
golens, de Loreley, de Melusina, de Teseu, de Anfion,
de Orfeu,
de Ulisses,
de Lilith,
do doutor Fausto, de Galahad, dos teutões e dos celtas,
com os seus druidas, assim como não lhe era indiferente a paisagem de Carnac
e seus menires ou os símbolos do pássaro roca e da flor de lótus.
Capa do livro Poesia reunida,
Cepe, 2018
Com estes
elementos Terêza Tenório construiria
uma poesia única e muito pessoal quando comparada à que era produzida pelos
seus companheiros de geração. Das naves espaciais dos seus primeiros poemas
passaria a uma poesia cósmica introduzida entre nós por César Leal com o seu magnífico poema O triunfo das águas, seguido, mais tarde, por Tambor cósmico. César
iluminaria a geração com os seus livros de poemas e os seus lúcidos ensaios de
crítica de poesia. Vários dos então jovens poetas seguiriam os seus passos.
Alguns, mais tarde, diriam que não, negando-o por três ou mais vezes, como na
negativa bíblica de Pedro a Jesus, negando a César o que era de
César. Terêza assumiu claramente e sem disfarces os ensinamentos recebidos do
mentor intelectual da Geração 65. César Leal ensinou a geração a ler os grandes
poetas e os grandes ensaístas. De Dante
a Jorge de Lima, de Samuel Johnson a Eliot, Pound ou Octavio Paz. Se observarmos as
epígrafes selecionadas por Terêza Tenório para a abertura dos seus livros vamos
encontrar nelas vestígios dessa orientação estética: estão lá o próprio César Leal, Walt Withman, Rainer Maria
Rilke, Jorge de Lima, Platão, Jorge Luis Borges, o Zohar,
Krishna... Eram essas as leituras de Terêza, certamente nem todas sugeridas
por César, mas algumas sim.
É hora de
encerrar esta evocação pessoal e literária de TerêzaTenório. Infelizmente ela não pode estar entre nós. Ela está
“gravemente viva. Naquele estágio de quase morta”, como a seu respeito escreveu
o poeta José Mário Rodrigues. Mas
não a sua poesia, que está e estará sempre saudavelmente viva, naquele estágio
de brilho que só é dado aos mais puros cristais, às pedras preciosas, aos
astros e às estrelas que, do infinito do universo iluminam a constelação da
nossa poesia. Quero terminar esta minha homenagem a Terêza lendo um dos seus
poemas de amor, que viria a ser o maior dos seus temas e escolhi o poema XII,
um soneto, de Noturno selvagem:
Não
tenho Amor em minhas mãos o tempo.
Tampouco
sou mais bela e afortunada.
Meu
corpo dispersei pelas tabernas
e
ao te ver a meus pés, como lamento.
Tu
me falas de vida e sentimento
e
eu te pergunto: Amor, por que tão tarde?
A
velhice que habita minha carne
ardeu-me
o coração e o pensamento
já
não te flui, Amor, como seria
se
desde há longo tempo me chegasses.
O
acaso fez em séculos os dias.
Por
isso, Amor, evita que te abrace.
Sou
anjo decaído e solitário.
Tenho
o signo da morte sobre a face.
*José
Rodrigues de Paiva é escritor, ensaísta e poeta
____
(*) Texto
lido em sessão do “II Encontro de Literatura
em Pernambuco”, realizado em 20 e 21 de maio de 2015 no Centro de Artes e
Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, sob a coordenação do
professor Anco Márcio Tenório Vieira e incluído no meu livro “Geração
65: Cinquenta Anos” (2016).
Olinda,
maio de 2015
EVOCAÇÃO DE TERÊZA TENÓRIO (*) (1949-2020)
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
23:02
Rating:

Belíssimo texto sobre a Terêza Tenório e a sua poesia, José Rodrigues...Mais que evocação, uma oração de profundo e analítico teor - o que sem dúvida ajudará a manter bem viva a memória poética desta grande poeta da Geração 65. Parabéns mais uma vez, meu amigo!
ResponderExcluir