A MULTIPLICIDADE DAS PEDRAS RARAS EM ANTONIO CARLOS SECCHIN
Por Diego Mendes Sousa*
Hálito das Pedras, de Antonio Carlos Secchin
Capa: Divulgação
A poesia de Antonio Carlos Secchin é mineração de gemas extremamente
preciosas extraídas, lavadas, feitas, refeitas e lapidadas ao olhar de um
crítico poeta ou mesmo de um ser humano irônico, que observa o cotidiano pela
via do risível, também paródico em ritmo de fogo e vivaz.
A modulação intelectual de Secchin se reveste de símbolos, de signos e
de obsessões. Foi a maneira que o notável e reconhecido crítico literário
encontrou para expor o seu estilo remanescente, sem ser herdeiro ou imitador da
experiência exitosa e anti-sentimento de João Cabral de Melo Neto, de quem é o
melhor leitor e intérprete, e de quem se distancia alargando a própria criação.
O título da presente obra, por mim escolhido, a critério pessoal sobre o
ato criador e mágico do autor homenageado, Hálito
das pedras (Editora Penalux, 2019), revisita uma das metáforas espelhadas
do cristal linguístico e inovador de Secchin.
(...) não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti (...)
Essa maneira de existência, de invadir o íntimo de outro, possui valor
redobrado na poética secchiniana, que rememora Camões, Fernando Pessoa, Olavo
Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Cecília Meireles, Vinicius de
Moraes, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros, que evidencia a busca
incessante de uma pedra de toque que esmere os seus eleitos e, por isso, os
seus favoritos.
Interessante ressaltar que o poeta é um exímio sonetista, apurado na
costura métrica de linha a linha, com claro brilhantismo; a perfeição salta a
cada verso posto, a cada pensamento, reflexão ou releitura evidenciada.
“A casa não se acaba na soleira,
nem na laje, onde pássaros se escondem.
A casa só se acaba quando morrem
os sonhos inquilinos de um homem (...)”
A casa levantada por Secchin bate à porta da imaginação. Quer
transfigurar o instante para reacender a infância em nós.
Secchin é um depurador da nossa História Literária. Sua poesia se
enraíza no íntimo dos Movimentos ou das Escolas e também dos grandes Mestres,
os mais diversos, recomendados e consagrados no Brasil e em Portugal.
(...) e, pronto para apossar-me
da mais pura pedraria,
abri-a com a mão amante
de quem pisa em joalheria. (...)
O seu amor ao conhecimento é pura
pedraria. Antonio Carlos se apossa da matéria que lhe é substância: a
Literatura. Seus poemas são metalinguísticos, sempre evidenciando o poema, o
poeta e a poesia. E também às cintilações recorrentes nas dicções cabralinas e
gullarianas: o galo, o sono e a pedra. Além dessas joias concentradas no ideal,
outros motes de Secchin são o mistério, a morte, o assassino, o assassinato, o
suicídio, o envelhecimento e o crime estético.
(...) Deles brotam versos duros,
poemas para ferro e João.
A escrita de Secchin se faz da conjugação das palavras redivivas que
saem pelo fôlego da sua visão privilegiada, respiração feroz de inteligência,
de sensibilidade e, sobretudo, de refinamento de leituras e de amizades
engrandecidas ao longo da sua existência.
(...) Brindemos ao que esconde o futuro:
metáforas, Aids e ossos.
O hálito da sua planificação poética é pessimista, mas isso não torna
nebuloso o seu discurso. Essa maneira própria de dizer e/ou desdizer as coisas
que assaltam a precariedade da vida faz plenitude na diversidade universal. E o
poeta se refaz no desdém permanente do eterno, sabendo-se vate ancorado no
tempo.
(...) não tenho tempo para ser eterno.
Nélida Piñon, formidável escritora carioca, classifica Antonio Carlos
Secchin como “um mestre das letras e do
pensamento. Um intelectual que estrutura o verbo com a precisão de quem circula
pelas ideias com a desenvoltura de um viajante clássico a semear o verbo.”
Concordo que Secchin seja um viajor indomável e erudito, alçando a
palavra através da beleza sutil do seu lirismo, que percebe o instante, a
memória, o afeto e a realidade.
(...) Tacaram pedra na Brasília da Janete,
me disseram que foi vingança do Batista. (...)
A estrutura dos poemas de Secchin segue um fluxo muito próprio, que se
revela em contenção e em sabedoria. Antonio Carlos é um poeta sem excessos,
tudo parece estar em perfeição; na sua linguagem única nada sobra e a palavra
não desafina. Poeta que se reinventa, a lapidar a tradição.
(...) Garganta do azul no revoo dos galos,
frio e pedras erguendo a manhã,
ouço a luz que o olhar envolve (...)
Antonio Carlos Secchin está, com merecimento, em posição de proa na
poesia nacional. Ele concentra a certeza de que a poesia é a (re)significância
da intuição e o retrato dos seus antônimos sem rosto, seja na ascese do humano
ou mesmo no estrato do invisível.
SOBRE A GÊNESE DE HÁLITO DAS PEDRAS
No princípio do precipício
meu início. (...)
Lembrei Machado de Assis, depois que tive intensa correspondência
eletrônica com Antonio Carlos Secchin sobre a gestação desta obra.
Com o Mestre Antonio Carlos, aprendi a reescrever o que penso, enquanto
poeta leitor de poesia e resolvi ampliar as visões anteriores, expostas com
alegria e admiração.
Discorro sobre a riqueza linguística de Secchin, com o aclaramento
estético necessário.
Dividi a presente antologia em quatro movimentos conceituais, cada qual
constituindo uma poesia reunida do autor, porque o texto secchiniano é reflexo
uno e os poemas parecem estar associados um ao outro e me foi impossível, o que
seria um doloroso lamento e uma imperdoável perda ao leitor, deixar a maior
parte dos poemas preteridos.
As seções escolhidas representam as premissas líricas de Secchin,
identificadas por este Organizador. A primeira seção, com menor número de
poemas, intitulada “Pedras Fundamentais”,
se justifica por concentrar os poemas-marco que traduzem a planta dorsal da
alta literatura desenvolvida por Antonio Carlos, onde se encontram os matizes
translúcidos do seu discurso.
“Pedras de Fogo” elucida o pensamento e alinhava poemas extraordinários, reflexivos,
afetivos, metalinguísticos, musicais e imagéticos, que evidenciam a
criatividade secchiniana, pois o poeta e o crítico sabe que nasce do escuro a
poesia que o ilumina.
Não bastou identificar que o fogo é a autêntica revelação. Em “Pedras Polidas” tem-se o ápice da sua
inventividade. É no soneto que Antonio Carlos Secchin se faz mais reluzente,
poderoso, profundo e profético. A carga poética dessa seção deixará o leitor
sob luzes, porque a memória das palavras levará a beleza do verso ao íntimo de
cada um.
O soneto O menino se admira no
retrato é imagem de escol, tão refinada que se torna transcendental.
“Pura Pedraria” é a joalheria de Secchin. Espécie de vitrine que exibe os poemas
articulados desde o seu início como criador de literatura, de A Ilha (1971) até Desdizer (2018), sua obra definitiva. Nesse vitral de joias, o
próprio poeta esclarece: o desavisado
leitor espere bem pouco de mim. O máximo, que mal consigo, é chegar a Antonio
Secchin.
Hálito das pedras é uma revisita apaixonada à alma visionária do grande poeta carioca,
que me deslumbra pela paisagem interior arcana sem exageros.
*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e organizador da poesia reunida
de Antonio Carlos Secchin, em Hálito das pedras (Editora Penalux, 2019,
esgotado).
Antonio Carlos Secchin I Foto: Divulgação
ALGUNS POEMAS
DE ANTONIO CARLOS SECCHIN
SELECIONADOS
POR DIEGO MENDES SOUSA
A CASA NÃO SE
ACABA NA SOLEIRA
A
casa não se acaba na soleira,
nem
na laje, onde pássaros se escondem.
A
casa só se acaba quando morrem
os
sonhos inquilinos de um homem.
Caminha
no meu corpo abstrata e viva,
vibrando
na lembrança como imagem
de
tudo que não vai morrer, embora
as
maçãs apodreçam na paisagem.
Sob
o ríspido sol do meio-dia,
me
desmorono diante dela, e tonto
bato
à porta de ser ontem alegria.
O
silêncio transborda pelo forro.
E
eu já nem sei o que fazer de tanto
passado
vindo em busca de socorro.
ESTOU ALI,
QUEM SABE EU SEJA APENAS
Estou
ali, quem sabe eu seja apenas
a
foto de um garoto que morreu.
No
espaço entre o sorriso e meu sapato
vejo
um corpo que deve ser o meu.
Ou
talvez seja eu o seu espelho,
e
olhar reflete em mim algum passado:
o
cheiro das goiabas na fruteira,
o
murmúrio das águas no telhado.
No
retrato outra imagem se condensa:
percebo
que apesar de quase gêmeos
nós
dois somos somente a chama inútil
contra
a sombra da noite que nos trai.
Das
mãos dele recolho o que me resta.
Eu
o chamo de meu filho – e ele é meu pai.
TRIO
Olavo
Brás Martins dos Guimarães Bilac,
que
no Parnaso ecoa como voz primeira,
já
vê que ali bem cabe, de gravata e fraque,
um
poeta que tentou vestir-se de palmeira:
Antônio
Mariano Alberto de Oliveira,
que
deposita em vaso os versos que semeia,
responde
que o futuro esconde da fogueira
Raïmundo
da Mota Azevedo Correia.
Poupados
do terror que a vida dissemina,
arremessando
ao chão as pombas e as estrelas,
declaram
que na jaula justa e alexandrina
não
há de haver perigo ou plano de perdê-las.
O
trio adestra o verso à limpa luz do dia.
Lá
fora a fera rosna a fome da poesia.
O MENINO SE
ADMIRA NO RETRATO
O
menino se admira no retrato
e
vê-se velho ao ver-se novo na moldura;
o
tempo, com seu fio mais delgado,
no
rosto em branco já bordou sua nervura.
E
por mais que aquele outro não perdure,
na
pura sombra de relâmpago do ato,
ele
há de ver-se mais antigo no futuro,
ao
ver-se no menino do retrato.
O
tempo, de tocaia em cada corpo,
abastece
a manhã com voz serena,
que
pouco a pouco se transmuta em voz de corvo,
na
gula aguda de ficar sozinho em cena.
A
moldura vazia anuncia o intervalo:
sobra
o tempo, e ninguém para habitá-lo.
REPARA COMO A
TARDE É TRAIÇOEIRA
Repara
como a tarde é traiçoeira:
dentro
dela se abriga o desengano
de
um dia que acabou sendo somente
um
resto de boneco, arame e pano.
Previamente
me abraçam a noite e o dano
de
tudo que não foi compartilhado,
senão
feito um pão velho sobre a mesa
na
espera seca e vã do inesperado.
Não
me consola a música do mundo,
nada
espero que acene em meu socorro;
se
a imagem do presente paralisa,
de
passado é bem certo que eu não morro.
Tanto
faz minha sorte ou meu inferno,
não
tenho tempo para ser eterno.
DE CHUMBO ERAM
SOMENTE DEZ SOLDADOS
De
chumbo eram somente dez soldados,
plantados
entre a Pérsia e o sono fundo,
e
com certeza o espaço dessa mesa
era
maior que o diâmetro do mundo.
Carícias
de montanhas matutinas
com
degraus desenhados pelo vento,
mas
na lisa planície da alegria
corre
o rio feroz do esquecimento.
Meninos
e manhãs, densas lembranças
que
o tempo contamina até o osso,
fazendo
da memória um balde cego
vazando
no negrume do meu poço.
Pouco
a pouco vão sendo derrubados
as
manhãs, os meninos e os soldados.
À NOITE O GIRO
CEGO DAS ESTRELAS
À
noite o giro cego das estrelas,
errante
arquitetura do vazio,
desperta
no meu sonho a dor distante
de
um mundo todo negro e todo frio.
Em
vão levanto a mão, e o pesadelo
de
um cosmo conspirando contra a vida
me
desterra no meio de um deserto
onde
trancaram a porta de saída.
Em
surdina se lançam para o abismo
nuvens
inúteis, ondas bailarinas,
relâmpagos,
promessas e presságios,
sopro
vácuo da voz frente à neblina.
E
em meio a nós escorre sorrateira
a
canção da matéria e da ruína.
A MULTIPLICIDADE DAS PEDRAS RARAS EM ANTONIO CARLOS SECCHIN
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:27
Rating:

Sensacional este ensaio do poeta piauiense Diego Mendes Sousa, sobre o livro "Hálito das Pedras", de Antonio Carlos Secchin. Espaço aberto poeta!
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