O Conto da Semana
Cinco pássaros (conto) de Adilson
Jardim*
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Reprodução
Acordou às sete horas da manhã e a
primeira coisa que fez foi tocar o ombro do marido carinhosamente, contente
pelo dia de sábado que havia chegado.
O homem retrucou algo, virou-se na
cama e começou a cochilar. Ela se levantou para fazer o café. As crianças
dormiam no quarto ao lado.
Estava ansiosa, tudo andaria como ela
desejava, nada de aborrecimentos neste dia, o café sairia perfeito, as dores
nas costas passariam, os filhos não brigariam à mesa e os pães estariam quentes
e fresquinhos quando todos se levantassem. As plantas nos vasos das janelas
sufocavam de esquecimento, os homens caminhavam pelas calçadas, ou dormiam, ou
morriam em algum lugar. O dia clareou e o sol rapidamente cortava o céu cremoso
de nuvens com sua faca fumegante. Pegadas na praia, risos infantis, bebês vindo
para o mundo, trazendo seu estigma ambicioso, para poucos perceptÃveis.
Recolheu o jornal na entrada, mas
evitou olhar para ele. Passou um tempo andando pela casa, o homem não saÃa da
cama. O quintal pendia debruçado sobre o vazio do chão – um sonho de criança,
um capricho tinha vindo habitar a casa: um viveiro de pássaros, de madeira, com
seis lados e com tela, telhado de zinco, muitos poleiros e balanços, um tanque
no interior com peixinhos dentro. Habitavam o viveiro um grupo de aves
variadas, marchetadas, todas elas.
A menina olhou para o viveiro, depois
para a mãe e perguntou “quem pôs cores nas aves”, que a mãe respondeu “Deus,
para que a gente pudesse admirar eles”. “Por que a mamãe botou eles na gaiola”,
“porque a mamãe admira eles mais que as outras pessoas”. As aves, no entanto,
espadanavam-se toda vez que a criança punha a mão na tela e sorriam novamente
quando iam para longe a mãe e ela.
Estava na janela, olhando seu
quintal, contemplando o espaço vazio do viveiro, pronto para ser instalado
desde que chegaram de mudança. Se choveria, se molhasse o quintal e a tela de
arame, se estragasse o programa na praia – o marido estava na cama, as crianças
no quarto ao lado, a mulher fechou a janela, ofuscada pela claridade,
sentou-se.
Um sonho de criança. Chegou ao fundo
do quintal onde estava o viveiro, se escondeu atrás da grande árvore; subiu na
raiz da planta silenciosamente, pediu-se com suas avezinhas, que agora riam e
eram dela, mesmo quando pareciam rir dela, ainda que a mãe dissesse que pássaro
não ri (Nosso Senhor também não ria, diziam os padres); mas para ela pássaros
não têm que obedecer à mãe ou aos padres, riam todas as vezes que a menina
passava e a mãe não via. Burrinha, como você é burrinha, filhinha; sai daÃ,
deixa os passarinhos em paz, eles têm que dormir, mas ela sabia que os pássaros
não eram da mãe, como a mãe queria que ela pensasse, e ficava horas encostada
na árvore. Ali eles não poderiam vê-la, e só assim ela poderia ouvi-los
cantarem, e aquele era o seu segredo. Como a mãe saÃa todas as tardes,
conversava sossegada com seus pássaros, e seu canto era tão alto que nenhum som
vindo da casa chegava aos ouvidos dela.
A mulher chorava mansamente. A criança
brincava sozinha entre as plantas, esquecida do tempo, entre avencas e
samambaias, onde não seria machucada nunca mais pelos bichos
grandes, mamÃferos, como diziam os livros da Escola, nem pelo padrasto.
Ela olhava através do viveiro e pensava nas vinganças das aves contra ela por
não poderem mais voar. A mamãe se foi, dizia o concriz todas às tardes, ela se
foi para sempre, não volta mais; mas a menina o chamava de mentiroso, dizia-lhe
que ele sempre falava aquilo, mas que ela sempre retornava, e tudo voltava ao normal.
Um dia, porém, como o tempo passasse, a temperatura começasse a esfriar e até o
último beija-flor do jardim partisse sem cumprir sua ameaça de encantá-la e
levá-la consigo, a menina arriscou deixar seu jardim e voltou para dentro de
casa. Suas pernas tremiam, andava pé atrás de pé. Será que sua mãe chegara do
trabalho, que lhe dizia ser bom, para trazer dinheiro para comprar roupas
bonitas para ela? Estaria preocupada, procurando por ela, daà deveria voltar
logo para dentro, onde o padrasto esperava?
O marido tocou amavelmente em seu
ombro, fingiria não tê-la visto chorar, estava tudo bem, tomariam juntos seu
café da manhã, ficariam juntos o resto do dia. A mulher aconchegou-se em seu
peito, foram juntos até a mesa e em seguida ele começou a falar-lhe sobre o
viveiro de pássaros, que logo poderia construÃ-lo para colocá-lo ali no
quintal, como era o desejo da esposa. Não sou maluca, disse melancolicamente,
fitando os olhos do marido, Claro que não é, querida, Acha que é estúpido o que
estou te pedindo? Não, é uma coisa boa o que está me pedindo, as crianças
também vão gostar, agora nós temos condições de possuir um viveiro bem grande e
bonito, e vai ficar ali, no meio do quintal. Quero trocar a água deles e os
coxos todos os dias, Claro, claro que sim. Agora ela sorria alegremente, o
marido podia ficar mais relaxado, teriam um dia completo, não importava se
chovesse, se não houvesse mais praia para as crianças ou o susto que o sinal
lhes trouxesse, através do olhar dos pequenininhos.
Ela concordou, mas tão logo
olhou para trás, eram-lhe estranhas aquelas palavras, então uma mão forte
agarrou seu pulso bruscamente no momento que ela atravessava o batente da porta
da cozinha. Não se importavam com ela os pássaros de sua mãe? Mas a menina
procurou pensar apenas nas falas das aves, não ouvir mais nada, mas longe do
viveiro o barulho era imenso, os ruÃdos de cá abafavam os sons de suas vozes.
Lá fora, o jardim dormia, serenava com a noite, enquanto a menina só ouvia os
bichos do escuro, sapos e grilos, corujas e gatos pretos, que se misturavam aos
de dentro de casa e lhe davam medo. Seus pássaros estavam seguros contra tudo
isso, a menina conseguia alegrar-se por eles, apesar de tudo. Se juntaria a
eles, qualquer dia, não esta noite, ainda; por enquanto, ficaria um pouco mais.
A noite caiu rapidamente e tudo que lhe ocupava agora era um lembrar-se dos
cheiros agradáveis do seu jardim, para esquecer talvez o cheiro forte do
padrasto; voaria um dia nas asas dos seus amigos, para não pensar o quanto o
peso do corpo de seu padrasto lhe sufocava. Queria ir com eles, leve.
De trás da árvore, olhava à mãe ir
levar comida para as aves no viveiro. Levava os coxos e os potes cheios de água
e, na mente da menina, verdejavam idéias alegres e festivas. A imagem da mãe
flagrada compunha a imagem da mãe que sentava ao lado do viveiro, que
alimentava os passarinhos e produzia gestos distraÃdos, que era solÃcita à s
pequeninas criaturas e que assoviava como se conversasse com os pássaros – e
viu os pássaros assoviarem, e diria para si mesma que viu ambos conversarem
entre si. E depois desse encontro, a mãe diria para a menina Vamos embora,
minha filha, e ambas fugiriam, voariam dali, das mãos do padrasto,
para o céu acima; um pensamento mau sempre o via chegando no tempo errado, encontrando
as duas arrumando as malas, então era preciso a imaginação dos pássaros, uma
imaginação alada, para não pensar nele batendo nelas, jogando sua mãe contra a
parede, chutando seu rosto; e assim, com as asas que seus pássaros lhe dariam
para pensar coisas aéreas, todas as facas de cozinha ficariam longe de
alcançá-las, pois as facas não chegam até o ar, e o sangue que vê na porta a
protegeria dos males do mundo e dos castigos na casa da mamãe, como se as
ungisse.
E as duas saÃmos sem o padrasto nos
ver, estamos longe. Quando chegamos a um lugar, tinha uma mulher gorda
cheirando esquisito, muito perfumada, e o perfume era esquisito. A mamãe
conversa com ela e ela nos deixa ficar. Parecia que elas já se conheciam.
“Finalmente”, falou a mulher gorda. “Por alguns dias, apenas”, a mamãe prometeu
para ela. Lá fora desmaiam as azaléias nos canteiros, e pardais gritam da
janela, suas palavras não são menos gentis que as dos pássaros de mamãe; nós
andamos por um corredor sujo, com goteiras no teto e lodo cobrindo as paredes.
As azaléias que vi na entrada não tinha nenhuma por aqui, só vasos de plantas
sem plantas, com cigarros dentro e um balde no chão aparando as goteiras do
telhado. Tinham muitos sofás velhos e cadeiras de plástico no corredor. E moças
sentadas neles, com vestidos curtos e muita maquiagem nos olhos, conversando.
Olhavam para a gente e ficavam cochichando. Duas riram bem alto (os pardais), e
a mulher gorda mandou elas se meterem nas vidas delas. Mamãe me puxa com força,
agora, não me deixa parar quando uma das moças me pega pelo braço e quer
conversar. A moça chamou minha mãe de um nome feio, mas a gente continuou a
andar até o fim do corredor.
Entramos em um quarto que a mulher
gorda abriu com a chave. As paredes eram brancas, mas estavam tão encardidas
que dava para ver manchas de mãos de gente e tinha muita parte da casca da
tinta caindo. Tiraram os lençóis da cama, que ficava no meio do quarto, outras
coisas de dentro da gaveta de um movelzinho, que esconderam de mim numa sacola
de plástico, depois a mulher gorda saiu com eles. Mamãe colocou a mala em cima
da cama e tirou roupa para a gente vestir. Sentei na beira do colchão e ela me
disse para eu não parar para conversar com as moças da casa, enquanto a gente
estivesse ali. AÃ reparei que havia um sofazinho em um canto do quarto, que
Mamãe me fez deitar nele, e logo dormi, de tão cansada.
Quando eu acordei, já estava tudo
escuro, era noite e eu estava sozinha. Ouvi uma música no corredor, muita gente
falando alto e gargalhando. Tinham vozes de homens e as risadas das mulheres.
Fiquei sentada no sofazinho, tentando ouvir o que diziam e olhando no escuro a
luz que passava por debaixo da porta. Me sentia tonta daquelas coisas novas,
começava a ficar arrepiada de medo, e quando alguém colocou uma chave na porta
e entrou no quarto fiquei parada, sem me mexer. Era minha mãe. Pareceu que
sorriu para mim no meio do escuro, mas não ligou a luz nem mesmo quando fechou
de novo a porta com a chave. Sentou junto de mim no sofá e mostrou o prato de
docinhos de festa que me trouxe. Estava arrumada e perfumada, com vestido
bonito e maquiagem nos olhos. Não perguntei por que ela estava vestida assim e
comi alguns doces. Está gostoso? Fiz que sim com a cabeça e ela me afagou os
cabelos, apanhou uma escova em cima da cama e me penteou. Continuava sorrindo
para mim. Então eu perguntei se podia voltar com ela para a festa que estavam
dando lá fora, mas ela fez uma cara séria e me proibiu de sair do quarto todas
as vezes que davam festas na casa. Prometeu que me levaria para tomar sorvetes
todas as noites que não tivessem aquelas festas. Resignei-me. Beijou-me no
rosto e me mandou dormir, antes de sair e voltar a trancar a porta. Depois de
uma tentativa frustrada de ver alguma coisa pelas brechas da porta, voltei para
o sofá, cansada de ficar deitada no chão frio e abatida pela fadiga e pelo
medo.
Nessa hora, a menina voltava a
sonhar. Nesses sonhos, ela acorda cedo e vai escondida até o jardim. A mãe
estava lá, com os passarinhos do viveiro. Elas estão excitadas, como a criança
nunca tinha visto. Elas sabem que a mãe trazia os coxos de alpiste e as
vasilhas de água, e começavam a falar com ela, a gritarem para ela, desde o
momento que abria o ferrolho da porta da cozinha. A mãe ria do alvoroço que
elas faziam, foi a primeira vez que a menina pôde ver. A mãe ria, e essa imagem
ficou na sua lembrança e a acompanhou para sempre. Enquanto isso, as raÃzes das
plantas cresceriam em paz aos seus pezinhos, e as folhas que caÃam traziam
vida, não mais a morte. O concriz, ave medonha colocada no viveiro por
engano de sua beleza, havia matado já dois outros passarinhos do viveiro. Eram
um modesto papa-capim e um frágilbico-de-lacre. Furou as cabeças deles com seu
bico de agulha e deixou os dois mortos perto do pequeno tanque de peixes. Foi
em duas ocasiões. A mãe ficou aborrecida com o acontecimento, mas tinha dó de
retirar o concriz de dentro do viveiro, que era a ave mais bonita de lá e a que
cantava mais forte. A menina ficava triste a cada passamento, chegava a ter
raiva do concriz, com seu olhar sem expressão. Como não tinha acesso à s
motivações da criatura, começou a ver nele um malvado.
Mas um sangue de
boi voa com decência e pressa para o poleiro mais alto, em frente ao da
ave medonha, desafia a autoridade do concriz; o corrupião se debate
com fúria dentro do viveiro, voando sem direção, e o riso da mãe já é
desfocado, sem o contorno, sem que o ponto fixo volte a aparecer dentro do
cÃrculo.
Desfaz-se todos os nós, corro pelo
quintal desarvoradamente, grito enquanto desabam manadas de nuvens sobre as
copas das árvores, que derrubam as florzinhas ainda em botão, encerrando a
chance de alguma delas frutificarem este ano. O meu esconderijo precioso é
assim revelado, o viveiro vai ficando para trás. Sei que o sangue de boi estará
em breve talvez caÃdo perto do tanque de peixes, a cabeça aberta e a vontade
vã.
A partir daqui vou crescendo,
não vejo mais as luzes sob a porta, nem tenho mais coragem de apagar alguma
para voltar a vê-la indiretamente, incidindo nas frestas. São inúteis a
algazarra das outras crianças e o tilintar de copos na outra sala, mas eis que
não havia algazarra de crianças nem tilintar de copos, apenas vozes de homens e
risos de mulheres cheirando a perfume barato; tudo o que consigo ver é apenas
indiretamente, são vestÃgios, são sombras de lugares, de coisas, de pessoas.
Terão morrido também o frei-vicente, o galo-de-campina?
Melhor voltar para o marido dormindo e
as crianças no outro quarto. É dia de praia.
*Adilson Jardim é poeta,
contista e professor da FAESC
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
09:28
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