Navegando nos versos da memória
Jaci Bezerra – o poeta da canção amiga/Foto: Divulgação
Nesta edição o DCP traz mais um grande
nome da poesia pernambucana:
Jaci Bezerra – “o poeta da canção
amiga”, conforme Edson Nery da Fonseca: “é não apenas o maior poeta de sua
geração, mais um dos grandes da língua portuguesa, estando ao mesmo nível de
Pessoa e Bandeira, Mourão-Ferreira e Drummond, José Régio e Jorge de Lima.”
Jaci Bezerra nasceu em 1944 na cidade
de Murici, Alagoas. Transferiu-se aos quinze anos de idade junto com a família
para a cidade do Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife.
Poeta, sociólogo, contista dramaturgo e editor. Foi integrante do grupo de
poetas de Jaboatão que mais tarde passou a ser denominado como a Geração 65, foi também fundador da Edições Pirata, importante movimento
editorial que lançou mais de trezentos títulos de até então jovens poetas da
cidade do Recife.
Segundo o poeta e sociólogo Sebastião
Vila Nova: “Se a geração 65 representa um dos momentos mais ricos na história
recente da poesia brasileira, o poeta Jaci Bezerra personifica o que de mais
refinado e original essa geração revelou. Alguns de seus poemas já figuram
entre aqueles que quem lê jamais esquece, os poemas de permanência definitiva
nas letras do Brasil.”
Os editores
Quatro poemas de Jaci Bezerra
Composição
liricamente surrealista
No
verão, se a manhã nasce madura
e
o tempo nos relógios se derrama,
um
ramo já antigo de ternura
abraça
a casa e a casa fica em chama.
E
no alpendre do verso em que se abriga
onde
a chuva, já velha, cai aos pingos,
a
casa vestida à noite de cantiga
se
abre feliz como um dia de domingo.
A
casa, afinal, é um objeto
de
palavras e sons que, embora esquivo,
é
capaz de sonhar, quando é aberto
e
capaz de voar, porque está vivo.
Tanto
que exposta do quintal à sala
avaliando
o que vive e o que viveu
ao
recordar a infância a casa fala,
como
falamos nós, você e eu.
E
alguns milagres se passam nos seus quartos,
pois
hoje em dia, vencidos tantos anos,
até
seus tênis velhos e pacatos
há
um certo tempo vêm ficando humanos.
Dever de casa
Era
tempo de Deus, e Deus chegava
imprevisto
e, quase sempre, ao fim da tarde:
ao
chegar, abria as portas que eu fechava
revelando,
a um passo, a eternidade.
Tinha,
Deus, o esplendor de um feriado
aberto
à inocência e aos brinquedos:
nesse
tempo de paz e chão molhado
eu
via Deus e não tinha medo.
O
que sonhava, comigo Deus sonhava,
o
sol, o céu, o mar, tudo era nosso:
se
queria pecar, Deus não deixava,
a
alma desconhecia o que é remorso.
O
tempo, com insônia, não dormia,
e
a vida, perambulando nos quintais,
apesar
de ingênua e mansa já dizia
que
esse tempo não voltava nunca mais.
Passou
o tempo, passei eu, passou
a
vida, a cada dia mais remota:
só
não passa, preservando o que restou,
o
Deus que sonha e me abre suas portas.
A lavra da
vida*
O
lavrador aprende
com
a pedra de mó
acesa
enxada fende
defende
o canto só
Defende,
não depedra
a
áspera e dura horta,
a
enxada sulca a pedra
a
vida, acesa, brota
Arada
a pedra oura
a
mão, mesmo doída,
a
safra da lavoura
doce
safra de vida
A
vida não divida
o
lavrador a horta
exige
toda a vida
dar
vida à pedra morta.
(In Lavrador, 1973, p. 98)
Opus 9*
Se
cauto o amigo ara
a
dura pedra doce
a
sentirá tão clara
como
se água fosse
Se
exausto o amigo chora,
dorme
e não amanhece,
verá
Nossa Senhora,
aceso
mar celeste
Se
acaso o amigo ama
e
não o ama ninguém
fará,
quem sabe, drama
do
seu amor, porém
Se
tarde o amigo escreve,
entre
a pedra e o espinho,
morrerá,
sim, e deve,
cada
vez mais sozinho
(In Lavrador, 1973, p. 96)
Navegando nos versos da memória
Reviewed by Natanael Lima Jr
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