A cadeira de balanço
Por Fátima
Quintas*
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Reprodução
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No canto esquerdo da sala, enroscado
sobre o tapete colorido em tons dégradé de vermelho-vinho, o gato não se mexe.
Quieto, imóvel, indiferente: um perfil bem talhado de estátua intocada. Pelo
macio, olhos azuis, marcados pela tarja cinzenta que os separa, vigia
felinamente a velha senhora, sentada na cadeira de balanço, a tricotar um
casaco de criança ainda indefinido no estilo e no conjunto. Todas as noites, após a pequena ceia, uma
xícara de chá com torrada seca, quando muito pincelada timidamente com queijo
branco ou geleia dietética, o ritual se inicia. Cabelos brancos ralos, presos
em um coque rente à nuca, óculos de grau, vestido de algodão leve, mãos firmes,
face enrugada, a mulher com os seus oitenta anos entrega-se à liturgia da noite.
Adora trabalhos manuais, mas, nos últimos meses, já não sente forças para ir
muito além no seu ofício criativo. Anos a fio, costurou para uma clientela
enorme de um Recife cheio de esplendor, vaidoso de jantares solenes e de
etiquetas refinadas. Pouco a pouco, a vista falta-lhe, a coragem limita-se à
lerdeza dos passos vagarosos e o comércio multiplica a oferta de vestidos de
grifes esmeradas, butiques preciosas, acabamentos irrepreensíveis, uma cadeia
industrializada que lhe rouba sonhos antigos do então atelier reverenciado pela
cidade. Na modesta casa de porta e janela, a velha senhora refugia-se. E à
noite, os fantasmas crescem, povoando o estado insone que a persegue. Tricota
obstinadamente. Assim, mata as horas e as horas a matam. Uma luta desigual entre
a cronologia e a existência.
Manhosamente, com as patas recolhidas
sob o dorso relaxado, não emite o menor som o animal doméstico. Vez por outra, levanta-se, roça com dengo as
pernas da velha senhora, os dois se acarinham, a solidão se divide, silêncios
se amparam na fragilidade da finitude. A morada esquecida se oculta sob a
vigília do discreto angorá. Nela não há televisão, o mundo externo se reduz às
notícias de um rádio fanhoso que insiste em sobreviver à velocidade da mídia.
Durante a noite os sons se recolhem, as vozes emudecem, a janela, de postigo de
madeira, se cerra. É hora de concluir a derradeira página do livro.
O ar pesa na lúgubre sala. A monotonia
dos atos adquire uma forma tão sequencial que feri-la diz de um desmonte
imperdoável. A regularidade da cadeira de balanço, indo e vindo, em compassos
simétricos, representa o último vestígio de vida. A palhinha indiana do assento
e do espaldar, desgastada pelos anos, suporta o peso de um corpo magro e
curvado, refém da sua própria história. Naquela cadeira, naquele balanço,
naquele sussurro inaudível, resta a imensidão do passado. Remeto aos belos
versos de Gilberto Freyre: "Um dia sobre os tijolos soltos/ a cadeira de
balanço será o principal ruído/ as mangueiras/ o telhado/ o pátio/ as sombras/
o fantasma da moça/ tudo ouvirá em silêncio o ruído pequeno".
No murmúrio emitido pelo balanço
pendular, a velha senhora repousa sobre o regaço uma caixa de madeira, larga,
funda, de verniz descascado, contendo pequenos novelos de lã e longas agulhas,
instrumentos indispensáveis à tecelagem dos delicados pontos de tricô. O
semblante cansado denuncia o abandono da ancianidade. Cochila. O calor umedece
o corpo, na testa franzida o suor deslizante, não há frinchas de aragem nem
tampouco de liberdade. A luz permanece acesa, o ritmo da cadeira exibe uma
moderação inigualável, as notas sincronizadas parecem reverenciar o concerto
mudo de Brandenburg. O gato não mia.
Entende o mistério da sala. A cerimônia da despedida da noite corresponde à
realidade mais dura que se repete no vácuo de uma casa meio-morta.
A cadeira de balanço ainda permanece
ocupada. O gato, tão felino e tão atento aos gestos da velha senhora, ao lado
dormita.
*Fátima Quintas é antropóloga, escritora, ensaísta, cronista e atual presidente da
Academia Pernambucana de Letras.
A cadeira de balanço
Reviewed by Natanael Lima Jr
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