Gullar busca poesia nas pequenas coisas
(Entrevista concedida
ao jornalista, escritor e tradutor Luciano Trigo, exclusiva para o Portal G1 –
Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP 2010)
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Ferreira Gullar
Foto: Reprodução
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Gullar é
reconhecidamente o mais importante poeta brasileiro em atividade. Vencedor do
Prêmio Camões 2010 e do Prêmio Jabuti 2011 com o livro de poesia Em alguma parte alguma. O tÃtulo do novo
livro vem de um de seus poemas: ‘Há uma corola,/ vermelho ferrugem,/ que
desabrochou em algum lugar./ Não está no jarro da sala,/ não tem perfume,/ não
cheira./Ela está em alguma parte alguma da vida.’ Gullar estava sem publicar
poesias inéditas há 11 anos, desde Muitas vozes. Em alguma parte alguma concilia
uma preocupação com as coisas pequenas e uma reflexão sobre o cosmos e sua
relação com o ser humano. Nesta
entrevista Gullar fala sobre o sentido de sua poesia.
Luciano Trigo - Você já disse que só escreve quando tem algo
novo a dizer. Sendo assim, qual foi o motor de seu novo livro, Em alguma parte alguma, mais de 10 anos depois do
lançamento de Muitas vozes – que por sua vez saiu 12 anos depois de Barulhos? E qual a relação entre
esses livros?
Ferreira Gullar -
Na verdade meus poemas nascem de alguma descoberta, de algo que me espanta, me
surpreende, porque ainda não o percebera antes. Pode ser um fato aparentemente
banal. Por isso não há um tema único no meu novo livro, mas temas que surgem
casualmente e me arrastam à reflexão especial da poesia. A relação que há entre
os dois últimos livros é que, em ambos, o mesmo sujeito, que sou eu, continua a
indagar pelo sentido das coisas e a surpreender-se com elas.
Luciano Trigo - Os poucos poemas já divulgados do livro novo sugerem uma linguagem mais
sensorial e poemas mais voltados para a percepção de (e a reflexão sobre)
pequenas coisas… A impressão procede?
Ferreira Gullar -
Você tem razão, as pequenas coisas têm cada vez mais importância em minha
poesia, muito embora, uma parte do livro novo fale do cosmo, das
galáxias, do “dentro sem fora”. Mas, na verdade, o que estou dizendo ali
é que me importa mais quanto haveria de durar meu gatinho do que quanto dura
uma estrela.
Luciano Trigo - Que motivação e que desafios a poesia ainda
apresenta, aos 80 anos, depois de tantos livros publicados e do reconhecimento
unânime?
Ferreira Gullar -
De fato, se estou vivo continuo o mesmo cara perplexo e disposto a encarar a
vida. A poesia resulta disso, porque sou um poeta e é próprio dos poetas fazer
indagações sem resposta.
Luciano Trigo - Que importância você dá ao Prêmio Camões?
Ferreira
Gullar
- O prêmio Camões tem, por si, uma alta significação, por ser a maior distinção
que se outorga a um escritor de lÃngua portuguesa. Sinto-me, portanto, muito
lisonjeado por tê-lo recebido. E o mais importante é que se trata de um
reconhecimento de meu trabalho de escritor. Todos nós escrevemos para os outros
e para que eles nos reconheçam e se reconheçam no que escrevemos.
Luciano Trigo - Com que autores você dialoga hoje, poetas ou
não? Quais realmente mexeram com você, ultimamente?
Ferreira Gullar -
Hoje eu mais releio do que leio. Releio os grandes poetas que me ensiram a
descobrir a poesia. Mas dialogo também com os poetas de hoje e aprendo com
eles. Há bons poetas nas gerações mais jovens. E isso me alegra muito, porque
confirma a opinião de que a poesia é essencial às pessoas e por essa razão não
morrerá nunca. Isso não quer dizer que ela disputa com a novela da televisão ou
com o romance best-seller. Mas, aqui, não é a
quantidade que importa. Mais vale um leitor que me diz amar meus poemas do que
um milhão de leitores sem rosto que se me leram ou não jamais saberei.
Luciano Trigo - O Manifesto Neoconcreto completou 50 anos em
2009. Que questões do Neo-concretismo ainda estão presentes, para o bem e para
o mal, na arte contemporânea?
Ferreira Gullar -
Entendo hoje que o movimento neo-concreto levou às últimas consequências
questões que estavam implÃcitas na arte do século XX. Esgotou-as, na linha de
seu desdobramento, particularmente nas obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica.
Não creio que tenha seguidores.
Poemas
Miguel Torga, Mário Quintana, Marcus Accioly, Natanael Lima Jr, Frederico
Spencer, Abigail Souza e Antonio de Campos
Chuva
Miguel Torga*
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(Img: Reprodução) |
Chove
uma grossa chuva inesperada,
Que
a tarde não pediu mas agradece.
Chove
na rua, já de si molhada
Duma
vida que é chuva e não parece.
Chove,
grossa e constante,
Uma
paz que há-de –ser
Uma
gota invisÃvel e distante
Na
janela, a escorrer...

Pequeno
poema didático
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(Img: Reprodução) |
O tempo é indivisÃvel. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisÃvel. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas...
E todos os encontros são adeuses.
Clarice
Lispector*
Marcus
Accioly
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(Img: Reprodução/Clarice Lispector) |
Ó Clarice,
Clarice, ó claridade
vermelha –
de maçã no escuro – fogo
na brasa do
cigarro, o incêndio e, logo,
a beleza
que inflama o corpo que arde.
Chama que
atrai a chama e chama a carne
nua e não
crua – o todo, a parte, o todo
da mão
queimada – a parte, o todo, a parte
da luz que
acende a luz com a luz do rosto.
O acidente
do sol, o crepitar
do cabelo
em fumaça, o despertar
dos olhos
sob o ardor e a dor perene.
Os
pensamentos queimam suas asas,
queimam-se
folhas, queimam-se palavras,
e renasce
das cinzas feito a Fênix.
*do Livro Daguerreótipos, 2008
Desarmei as
dores*
Natanael Lima
Jr
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(Img: Reprodução) |
Desarmei
as dores
e
as plantei no jardim do passado.
Ouvi
o seu chamado
(contra
a vida)
e
desviei o seu curso
no
silêncio do poema.
Desarmei
as dores
como
se brotasse do tempo
anéis,
pontes, girassóis
e
vaga-lumes.
Desarmei
as dores
colorindo
as nuvens
sobre
rios e alagados.
Desarmei
as dores
e
as amei como quem perdoa,
como
algo eterno,
etéreo
e fugaz.
Desarmei
as dores
como
se brotasse das manhãs
folhas,
flores e frutos.
*In À
espera do último girassol & outros poemas, 2011
Regresso*
Frederico Spencer
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(Img: Reprodução) |
Retorno para ti
como
se trocasse de pele ao sol
que
tatua papoulas na manhã.
Para
ti retorno
percorrendo
territórios
de
papel e tinta
onde
há muito insisto em descobrir
águas
e cores para teu nome.
*Do livro Quadrantes Urbanos,
pag. 32
Ao Rio Capibaribe
Abigail Souza
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(Img: Reprodução) |
Quando
a noite chega
deleito-me
em delÃcias
clandestinas
estrelas.
Embriagantes
vitrines:
roupa/ópio/corpo.
Dispo-me para homens
faces/trajes de mulher
sonho,
le(r)do e parvo
engano fatal.
Realidade?
Nas
esquinas
tuas
esperas
menina/
mulher
claro/escuro
estrela
de sisal.
Teus
quartos:
desabafo
e dor.
Reflito
nos reflexos
- tuas
vitrines
nem
mulher nem menina
mas o
homem que nunca quis
para
mais uma vez
(des)aparecer
diante
das tuas cortinas.
Meu paÃs passado a
limpo
Antonio
de Campos
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(Img: Reprodução) |
Tenho passado noites
mais em branco do que estes
versos
e fico acordado
sem que pestana dê com pestana,
pensando num grande chá de
caridade
pra salvar o meu paÃs
Sei que não precisas
nem de chá, nem tampouco de
caridade
Doutra coisa, sim, é que
precisas:
sangue pra corar de vergonha a
tua cara –
estás crescido e de há muito
perdeste os dentes de leite
De sonho em sonho é que se anda:
devagar: o santo é de louça
e ainda quer fazer seu último
milagre não econômico
Se for econômico, que seja,
melhor, mas seja,
pois acreditar em milagre de
santo
ensinaram-me os avós
Meu Parnaso é aqui e é aqui a minha Pasárgada,
serei amigo do rei ou do
presidente,
todavia,
não é pra ter mulheres que desejo
sua companhia –
a
quero, pra juntos,
tirarmos Jesus Nazareno
à cruz de estrelas do sul onde o
cravaram
*1988
(bodas de prata), em Palavra de Ordem
Gullar busca poesia nas pequenas coisas
Reviewed by Natanael Lima Jr
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09:44
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Simples ou complexas as expressões poéticas são fascinantes e o teor nos conduz a momentos prazer.
ResponderExcluirEu particularmente gosto muito de Mário Quintana que alguns denominam "o poeta das coisas simples" e me perco na simplicidade que para mim é extremamente complexa e cheia de emoção.
beijos e uma ótima semana.
Joelma
Olá Joelma, feliz com sua visita.
ResponderExcluirabraços,
Natanael Lima Jr
Olá Joelma, feliz com sua visita.
ResponderExcluirabraços,
Natanael Lima Jr