Os Poetas, um Poeta
Fátima Quintas*

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Reprodução
Manuel
Bandeira
A poesia representa o clímax da
literatura. Nela encontramos as metáforas da vida e toda a simbologia do que se
vê e do que não se vê. O poeta transfigura a realidade, tornando-a suportável à
sensibilidade dos homens. É preciso versejar as durezas da rotina para
acreditar que a ordem do real escapa aos nossos olhos; então, os poemas
adquirem a verdade que se deseja imaginar. Que o sonho vença a inexcedível
concretude. É só. Estou exausta dos modelos pré-fabricados, assim como Manuel
Bandeira estava farto dos purismos limitantes.
A palavra pode tudo, desde nomear para
dar sentido aos objetos até enganar os fantasmas, mistificando-os. Poetas,
leio-os todos os dias. Não consigo afastar-me dos seus mistérios. Gosto de percebê-los
driblando a vida ou de senti-los na catarse intensa. E deparo-me com Desencanto
de Manuel Bandeira: “Eu faço versos como quem chora/ De desalento... de
desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de
pranto”. Não, Bandeira, não fecharei o livro. Necessito folheá-lo para
apaziguar as intermitências da alma. Vou em frente. Sei que a tuberculose o
atormentou, encontro no acervo epistolar da Fundação Gilberto Freyre cartas e
mais cartas endereçadas a Gilberto Freyre, falando da doença e prevendo uma
morte precoce, bem perto, à porta. E, no entanto, viveu 82 anos (1886-1968),
sempre afligido pelo espectro da enfermidade. Em termas especiais, cidades de
clima seco, recomendações médicas e a “indesejadas gentes” rondando, rodando,
rodando... E, você, Manuel Bandeira, a gritar as pulsões em versos belíssimos.
A dor o impulsionava a jorros intimistas. “ A vida é um milagre./ Cada flor,/
Com sua forma, sua cor, seu aroma,/ Cada flor é um milagre”.
A ansiedade da escrita lhe roubava as
horas e não é à toa que o seu primeiro livro (1917) tenha recebido o título de A
cinza das horas – impresso nas oficinas do Jornal do Comercio, 200 exemplares. Escrito, conforme disse, “para
iludir o sentimento de vazia inutilidade. Este só começou a se dissipar quando
fui tomando consciência das ações dos meus versos sobre amigos e principalmente
sobre desconhecidos. Uma tarde voltei para a casa seriamente de ter ouvido, na
livraria José Olympio, Raquel de Queiroz me dizer: Você não sabe o que a sua poesia
representa para nós”. O tempo chamuscado de cinzas, o seu. Mas pleno de
criatividade, como se a descoberta das coisas lhe trouxesse o ânimo
imprescindível à trajetória de algum futuro. “Fui menino tuberculoso, nada
sentimental. A doença, porém tornara-me paciente, ensinara-me a humildade, o
que estava muito certo. Infelizmente gerou também em mim um sentimentalão”. Um
sentimentalão que se exprimiu poeticamente, permitindo conduzir os dias,
contados um a um, à maneira de Nietzsche,
quando alertava que cada minuto deve ser transformado numa obra de arte. Aos
grandes homens a doença não os apequena, pelo contrário, engrandece-os: Manuel
Bandeira, Nietzsche, Max Weber, Freud, Virgínia Woolf (com eterna depressão, a
ponto de suicidar-se)...
Em março de 1933 se viu forçado a
abandonar a residência à Rua do Curvelo, onde morou entre 1920 e 1933,
apegando-se ao seu canto felinamente, um gato recolhido ao aconchego dos
prazeres mais recônditos. Mudou-se para a Rua Morais e Vale, no coração da
Lapa. Não se acostumou à nova paisagem, ocasião em que escreveu o belo poema O
beco, a lamentar a convivência do refúgio anterior: “Que importa a
paisagem, Glória, a baía, a linha do horizonte?/ - O que eu vejo é o beco”. E
quantos becos nos deparamos ao longo da existência!?
A poesia de Manuel Bandeira nasce de
um sofrimento diário. Conhecia o abismo bem próximo, aos seus pés, bastava uma
pequena escorregadela, e pronto. Por isso tinha pressa de apreender o mundo,
apreendê-lo através de emoções que o inspiravam, e dele exigiam a urgência da
escrita: “Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre
como que provisoriamente”. A morte nunca o ceifou. Manuel Bandeira, eterno,
eternizante, eternamente Manuel Bandeira.
*Fátima
Quintas é
escritora e presidente da Academia Pernambucana de Letras
POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, FREDERICO SPENCER,
FRED CAJU E MÁRCIA MARACAJÁ
Salvador
Allende*
Natanael Lima
Jr
A Glória Wormald Ochoa

A
tarde silenciou a voz
da
liberdade e da justiça.
O
canto não resistiu à tristeza
e
partiu sem glórias e honras.
O
golpe infame tingiu de sangue
a
pátria e a resistência de um povo.
Salva-nos
dessa dor,
Salvador
Allende!
Junho, 1987
*do livro “À
espera do último girassol & outros poemas. 2011.
Em matéria de poesia*
Frederico Spencer

Quanto de poesia há
no chão
de tua cozinha? – o mundo
encharca
o poema que ainda não nasceu
escaldado
na pia:
o
barro, as calçadas, o mangue
no
prato vazio
do
menino da boca, da noite
morrerá
no fim do dia
sem
dizer seu nome.
Quanto
de poesia há
no dia
dos meninos
nas
calçadas, no barro, no mangue
na boca
do mundo?
*do livro “Abril Sitiado”. 2011.
Hortênsias ausentes
Fred
Caju*

Eu cultivei versos
para colher flores,
eu pintei meus sonhos
com todas as cores,
pois era preciso
perder meus temores.
Os versos plantados
foram coloridos,
porém, os meus sonhos
não foram colhidos:
o monocromático,
assim, exibido.
Das flores que vi,
eu senti a ausência
da flor dos meus sonhos:
nenhuma hortênsia;
eu troco o final
pelas reticências.
Meu olhar distante
vaga no horizonte,
nenhum dos meus sonhos
brilharam no front:
fogem as hortênsias,
racham-se as pontes.
Sem flores nem cores,
resta o cinzento;
sem versos nem sonhos,
falta sentimento;
precisei plantar
flores no cimento...
*Fred
Caju é poeta e edita o blog Sábados de Caju
Costumes
Márcia Maracajá*

Eruditas foram as suas manhãs
Ao som do piano
Sob o cheiro dos brioches
Servidos sobre fina renda
Ornando a mesa
E do aroma do sabonete no lavabo
Ao som do piano
Sob o cheiro dos brioches
Servidos sobre fina renda
Ornando a mesa
E do aroma do sabonete no lavabo
Eruditas foram suas tardes
Talheres de prata à mesa
Tinindo
Delicada porcelana
Guardanapo de mil fios ao colo
Requinte no servir
Tinindo
Delicada porcelana
Guardanapo de mil fios ao colo
Requinte no servir
Eruditos seus chás
E biscoitos com sequilhos
Visitas marcadas com antecedência inglesa
Mulheres obedientes
Farfalhando suas vidas sem sentido
Sem delas se servirem
Visitas marcadas com antecedência inglesa
Mulheres obedientes
Farfalhando suas vidas sem sentido
Sem delas se servirem
Até que um dia
No passeio público
Avistou um cão vagabundo sem dono
Remexendo um lixo escondido
E, de súbito,
Descobriu-se também afeita daquele lixo
E deliciou-se mundanamente
Fazendo-se livre
Avistou um cão vagabundo sem dono
Remexendo um lixo escondido
E, de súbito,
Descobriu-se também afeita daquele lixo
E deliciou-se mundanamente
Fazendo-se livre
*Márcia Mracajá é escritora e edita o
blog Márcia Maracajá
Os Poetas, um Poeta
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