A Importância do Sertão na Obra de Raimundo Carrero*
por
Gerusa Leal*


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"Como
escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso
sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a
repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão
fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno
da eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o eu que ainda não
encontrou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua".
Guimarães
Rosa
Entrevista
conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em
janeiro de 1965 e publicada em seu livro: Diálogo com a América Latina. São
Paulo: E.P.U. 1973
A partir
dessa fala de Guimarães Rosa, acho que posso, sem receio, afirmar que no
sertão, do ponto de vista metafísico, psicológico, fala-se a língua de Raimundo
Carrero. E Raimundo Carrero fala a língua do sertão. Mesmo se sertanejo não
fosse. Pois a obra de Carrero, também, além de não seguir a receita de
Hollywood, se escreve no terreno da eternidade, da solidão. Nos romances de
Carrero, os personagens também são o eu que ainda não encontrou um tu. Na
estética de Carrero, também os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.
Mesmo,
dizia eu, que sertanejo não fosse. E sendo, ainda mais força tem o sertão, de
todos os pontos de vista, na obra de Carrero. Ainda quando a paisagem e o tema
não são sertanejos, os personagens, em sua psicologia, embora urbanos, trazem
dentro de si alguma espécie de sertão. E não podia ser diferente já que
sertanejas são as raízes do escritor.
No romance
de estreia de Carrero, e na protagonista escolhida, Bernarda Soledade, a tigre
do sertão, a partir do título o sertão se encontra presente. Mas o que chama a
atenção, já nesse livro, é a força, a densidade, a vastidão dos sertões
interiores. É a psicologia da protagonista, uma mulher seca na exteriorização
dos seus atos, como secas parecem as fortes mulheres do sertão, seca nos
gestos, nas palavras, como era da cultura sertaneja no tempo em que o romance é
ambientado, como seco parece o sertão quando não chove:
“- Naquelas
matas, vamos caçar muitos cavalos. Em Puchinãnã, falta um homem de músculos
fortes. Poderia sair do meu ventre. Entretanto, não passo de uma mulher seca.
Nenhum homem quis pousar sobre o meu corpo alvo. E os cavalos serão a presença
do macho.”
Carrero,
mesmo sendo sertanejo, costuma dizer que não conhece seca, pois em Salgueiro
chove muito. Além disso, fica difícil falar na importância do sertão, região
geográfica ou socioeconômica, pois teríamos que definir se falávamos do sertão
mítico, que persiste no imaginário principalmente de quem não é da região, ou
do sertão contemporâneo, que apesar de preservar cultura própria, já assimilou
tanto da cultura dos grandes centros urbanos. Os dois convivem, como já disse
Antônio Torres, sem se negar.
Os
personagens de Carrero não têm nada dos personagens tipo da literatura
regionalista. Então, não dá pra falar da importância do sertão na obra de
Raimundo Carrero sem reinventar o significado da palavra.
Ariano
Suassuna teria dito que o sertanejo é um povo de sobrevivência. Euclides da
Cunha, que é antes de tudo um forte. Os personagens de Carrero todos lidam com
a questão da sobrevivência e todos são, a seu modo, fortes, mesmo quando precisam
tirar essa força de uma incomensurável fragilidade. Assim como todo ser humano.
É desse substrato sertanejo que nascem também as personagens de Sombra Severa,
vivendo paixões primitivas, com uma secura temperada de afetos que nunca se
dizem de todo.
Se há um
sertão de Guimarães Rosa, um sertão de Euclides da Cunha, um sertão de Ariano
Suassuna, em As sementes do Sol – O semeador, o leitor é apresentado ao sertão
de Raimundo Carrero, um sertão que, segundo o próprio escritor, foi criado como
a região geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma
cidade, ou apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um
rio, de um açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem
nomear os lugares pelo nome que receberam na tradição. Carrero diz preferir ter
mais liberdade. Sua região, seu sertão começou com Santo Antônio do Salgueiro,
ou simplesmente Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque, afirma o
escritor, não sou retratista, sou intérprete. Esse sertão, que Raimundo Carrero
carrega para onde for, aparece em algumas passagens de As sementes do Sol:
“Terminada
a reza, pesou sobre a sala um silêncio morto. O silêncio da noite de
Arcassanta. Um silêncio morto e suave. Um silêncio que beirava a agonia. E sem
qualquer ruído, enquanto as empregadas solícitas e caladas providenciavam as
outras comidas, os homens levantaram as cadeiras para se sentar.” (...)
“Avistaram
a casa-grande de Arcassanta. A casa – avarandada, alta, pintada de branco,
portas e janelas azuis – apareceu no meio da neblina.”(...)
“Parecia
que retornava a Arcassanta, os chinelos empoeirados, para conviver com
fantasmas, almas penadas. Para escutar o bater de portas e janelas abandonadas,
sacudidas pelo vento.” (...)
“Eram seis
horas. Sabia porque de Arcassanta podia escutar as batidas do sino da capela de
Santo Antonio do Salgueiro. Batidas monótonas, tristes, compassadas. Mais
monótonas e mais tristes quando ouvidas à distância. Na lonjura das ideias.”
(...)
“O cavalo
fazia voltas, voltas, mas estava mesmo era retornando para Arcassanta.
Involuntariamente. Sem que ele, o cavalo, nem ele, Absalão, tivessem forças
para evitar.”
Carrero não
evita. Em O amor não tem bons sentimentos, romance cujo cenário e temática são
bem mais urbanos, retorna a Arcassanta:
“Agora me
lembro do corpo de Biba nas águas barrentas do rio em Arcassanta, e tenho
certeza de que na verdade estava de cócoras, por causa do hábito. Apenas de
calça, sem camisa, repousava os braços nos joelhos, os pés na lama. Não foi
assim desde o começo, confesso que não foi assim. Disse aos policiais tantas
vezes, apesar das pancadas.”
Arcassanta,
o sertão de Raimundo Carrero, aparece em outros romances, mesmo sem esse nome,
de outras maneiras. Em Sombra Severa, por uma narrativa de forma seca, com
frases curtas e incisivas, economia verbal que caracteriza o lacônico Judas. O
sertão como região está presente no romance, mas mais como paisagem para um
enredo que se passa muito mais dentro do que fora dos personagens. É do sertão
de dentro que vêm também as impressões, os pensamentos, as solidões de Judas:
“Judas
pensou em tudo isso depois que trouxe o tamborete, sentou-se encostado na
parede da casa, o alpendre recendendo a matos verdes, e acendeu o cigarro, cuja
fumaça – antecipada pelo vaga-lume do fósforo –ensombreou o rosto ossudo e
taciturno já escurecido pelas abas do chapéu, ombros arriados, um olhar sofrido
– o touro que o habitava -, gestos monótonos de quem sabe que a noite não
recua.”
Carrero já
disse, em outro momento, que foi no Sertão, vendo os homens nas feiras, vendo
os vaqueiros, que sua vida começou a ter sentido. Não só os homens fortes e
trabalhadores, os vaqueiros, mas também os bêbados, os loucos, os fracassados.
Não só os homens, mas também as mulheres. Não só as mulheres secas e de uma
virtude severa, austera, mas também as prostitutas.
Foi nesses
homens e mulheres observados desde a infância, primeiro no sertão, que também a
vida de seus personagens ganhou sentido. Já em As sementes do Sol – O Semeador,
Carrero reflete sobre questões que ganham características únicas sob o Sol de
um sertão que transmite a seus personagens a cultura e os valores de uma
região, embora sejam questões universais, como por exemplo as da religião, da
morte:
“As
vizinhas rezavam em torno do caixão. Davino e os filhos sentaram-se na mesa
para o almoço. Apesar da morte da esposa, não permitiu que alterassem os
hábitos da casa. Mesmo quando recebia os pêsames, ordenou que as empregadas
preparassem um cozido gordo. Não admitiu sequer que Mariana, tão frágil quanto
um vulto, permanecesse ao lado do caixão. Desejava todos na mesa, todos. (...)
Davino fez
o Nome-do-Pai. Todos o acompanharam. Segurando uma velha Bíblia de capa negra,
rezou o salmo. Terminada a oração, os talheres tiniam. Mariana, mais ausência
do que vida, colocou umas poucas colheradas no prato. As lágrimas escorriam
pela face. Lutava para servir-se. Escutavam-se, vindos da sala de visitas, os
cânticos fúnebres.
Lourenço
tocou com o cotovelo em Absalão:
- Ainda não
foi visitar o rio onde sua mãe suicidou-se?
Davino
levantou a voz.
- Não quero
que fale deste assunto agora. Aliás, você conhece suficientemente os costumes
desta casa, Lourenço. Sabe que não é permitido falar na mesa. É no silêncio da
mesa que se agradece a Deus pela abastança.”
Questões
como a embriaguês habitual do personagem são também tratadas, em As sementes do
Sol, à luz dos costumes, valores e cultura sertaneja:
“A mesa,
Absalão sabia, não era ali como um templo. Era uma arena. Uma luta. Lourenço
sempre falava, embriagado ou não. Embora fosse raro não estar embriagado. Ester
o repreendia, poupando o nervosismo e o refinamento do marido. Muitas vezes
reuniu os filhos antes das refeições para pedir que não rissem com as
brincadeiras do tio.”
O cenário
da figura do patriarca à cabeceira da mesa, do respeito que lhe devia toda a
família, dos cuidados da mulher para que esse respeito não fosse afrontado pela
ingenuidade das crianças ou pelo destempero do parente embriagado, ganha
contornos típicos pela influência da formação sertaneja do escritor, o que fica
bem evidente nas cenas e diálogos lidos. Típicos nesse aspecto, pois as
questões, é preciso reafirmar, são universais. Como bem lembra Tolstoi na
abertura de Anna Karenina, no sertão pernambucano ou na Rússia, as famílias
infelizes são infelizes cada uma a sua maneira. E é dessa infelicidade, dessas
agruras, dessas angústias, desse eu que ainda não encontrou um tu, seja no
sertão, seja nos espaços urbanos, que a obra de Carrero fala, através da vida
de seus personagens.
Pincei
algumas poucas obras, alguns poucos personagens que, a meu ver, exteriorizam
mais a importância do sertão na obra de Carrero. Mas em todos os seus
personagens o leitor vai encontrar, de alguma forma, essa força, esses valores,
essa cultura sertaneja, mesmo que os personagens, repito, sejam urbanos. Foi a
forma que encontrei para não fugir ao tema proposto pela mesa, para não seguir
por um viés reducionista, por uma análise sociológico-geográfica.
A obra de
Carrero é vasta, seus personagens são complexos, a raiz sertaneja é um dos
múltiplos aspectos que nutrem suas narrativas – sua Arcassanta, que ele carrega
para onde for. Importante, sim, mas mesmo quando explicitado, na obra de
Raimundo Carrero o sertão aparece como elemento de composição, cenário para a
reflexão sobre temas e questões humanas de ocorrência e importância universal.
Ou, como diria Autran Dourado, perda recente para a literatura brasileira,
grande escritor e teórico da prosa de ficção:
“Os
críticos-sociólogos recebem os personagens como gente, ainda estão na mimesis,
quando os criadores muito pouco se preocupam com isso, a não ser
secundariamente, para passar a sua moeda falsa e iludir – da mesma maneira que
com a metáfora – o leitor: o bom do personagem é ter um corpo...”
Os personagens
de Carrero têm corpo mas, acima de tudo, têm alma. E é muito mais nessa alma
que circula, metaforicamente, o sangue sertanejo do autor.
*Gerusa Leal é
escritora e editora do blog “Flor de Gelo”
*Texto da fala de Gerusa
Leal na mesa em homenagem a Raimundo Carrero, em Arcoverde, na quarta edição da
Jornada Portal do Sertão, promovida pelo SESC Pernambuco.
POEMAS DE OSCAR NIEMEYER, NATANAEL LIMA JR, FREDERICO SPENCER E ANTONINO
OLIVEIRA JÚNIOR
Poema da Curva
Oscar Niemeyer
1907 – 2012

Foto: Reprodução
Não
é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual.
A curva que encontro nas
montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas nuvens do céu,
no corpo da mulher amada.
De curvas é feito todo o universo.
O universo curvo de Einstein.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual.
A curva que encontro nas
montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas nuvens do céu,
no corpo da mulher amada.
De curvas é feito todo o universo.
O universo curvo de Einstein.
Ainda batem
nossos corações*
Natanael Lima
Jr
para o poeta Paulo
Cultura

Imagem: Reprodução
Sim,
poeta, é chegado o tempo de recomeçar
é
chegado o tempo de nos unir
voz
a voz
sonho
a sonho
poema
a poema.
Sim,
poeta, é chegado o momento de navegar
(“navegar é
preciso”)
e
embalar nossos sonhos
numa
canção fraternal
aberta
ao sol e as manhãs.
Sim,
poeta, é chegada à hora
(“viver não é
preciso”)
nada
mais nos acrescenta
tudo
mais nos limita.
E
para não nos esquecermos,
ainda
batem nossos corações.
Calhetas,
janeiro, 1985
*do livro “À
espera do último girassol & outros poemas”. 2011.
Um lampejo*
Frederico Spencer
Ao poeta Ferreira Gullar
“o poema não voa de
asa-delta
não mora na Barra
não frequenta o
Maksoud...”

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Às
vezes
poeta,
num lampejo
acho o
poema
bipolar
de
comportamento:
é
triste, às vezes chora de rir.
É
deficiente:
às
vezes sangra
manchando
o azul de vermelho
a manhã
por falta
de
vitamina K se derrama
numa
hemorragia
sufocando
a pena
implora
para não nascer
faz-se
de morto
no seu
velório, é avesso
à dor e
à alegria empresta
sua
alma, poeta
para
viver neste mundo.
*do livro “Abril Sitiado”. 2011.
A paz que me acolhe
Antonino Oliveira

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Deitei meu olhar
Na relva macia que é teu corpo
E ali deixei que repousassem
meus sentimentos;
Teu silêncio,
A paz que acalenta e acolhe
minh’alma.
Quem se abriga nas asas do
amor,
Vence tempos, ventos e
tempestades.
A Importância do Sertão na Obra de Raimundo Carrero*
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