ENTREVISTA COM O ESCRITOR URARIANO MOTA
Entrevista
concedida a Natanael Lima Jr*
Urariano
Mota é escritor e jornalista, nascido em Água Fria,
subúrbio do Recife. Autor de Soledad no
Recife, que reconstrói a passagem da militante paraguaia Soledad Barret
pelo Recife em 1973, e a traição que levou à sua prisão, tortura e morte pelo
governo militar. Publicou ainda O filho renegado
de Deus (Prêmio Guavira de Romance 2014), Dicionário Amoroso do Recife e A
mais longa duração da juventude, que narra o amor, política e sexo em uma
viagem de memória no Recife de 1970 a 2017. Atualmente, é colunista do
Vermelho, Brasil 247 e Jornal GGN.
Escritor Urariano Mota /
Foto: Reprodução
Natanael Lima Jr. - Meu caro Urariano Mota, um prazer grande
entrevistá-lo e podermos conhecer um pouco da sua vasta trajetória como
jornalista e escritor. Quem é Urariano Mota?
Urariano Mota - Sou
fundamentalmente escritor. Meus textos jornalísticos têm, ao mesmo tempo,
rebeldia às normas dos jornais e realização literária de outra maneira. Neles
sempre está presente a voz do escritor. Sou filho de João e Maria, em um bairro
popular, cuja formação possui traumas dos quais às paredes confesso. De outros
traumas, nem às paredes falo de viva voz. Meu crescimento intelectual se deu à
força de uma persistente autoeducação, porque desejava falar desse mundo
submerso.
NLJ - Quando você começou a se interessar pelo jornalismo e a literatura?
UM - Por
jornalismo, porque eu desejava trabalhar em algo que exigisse de mim o texto
escrito. Nem adivinhava que a liberdade estética, para ganhar dinheiro com
jornalismo, eu não teria. Mas comecei a me interessar por literatura bem antes,
quando ainda não sabia que a expressão da gente é arte. Lembro que esse remoto
aconteceu no dia em que li o soneto Só!
de Cruz e Sousa:
“Muito embora
as estrelas do Infinito
Lá de cima me
acenem carinhosas
E desça das
esferas luminosas
A doce graça
de um clarão bendito;
Embora o mar,
como um revel proscrito,
Chame por mim
nas vagas ondulosas
E o vento
venha em cóleras medrosas
O meu destino
proclamar num grito,
Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me
sinto fundamente estranho
E o amor e
tudo para mim avaro...
Ah! como eu
sinto compungidamente,
Por entre
tanto horror indiferente,
Um frio
sepulcral de desamparo!”
Quando eu li esse
poema, senti que Cruz e Sousa parecia falar para mim, e no entanto falava da
própria dor. Eu era adolescente e esses versos chegaram com força em um momento
de profunda revolta, mais revolta que desalento. Então ali começou o meu longo
e infindável aprendizado. Hoje sei que falamos do mundo quando falamos do mundo
que vai dentro da gente.
Depois, esse poema me
voltou em momentos da juventude. Quando sozinho, estávamos eu e o poeta iguais
no frio sepulcral de desamparo, mas sem
estrelas do infinito acenando carinhosas. Negro igual a Cruz e Sousa, eu
sentia a desesperança do soneto igual, mas o que me amarrava nu e chagado era o
desencontro entre a minha tendência e o que exigiam de mim. A minha tendência
era a literatura. E com muito trabalho, às vezes com algum sucesso da expressão
da palavra, eu compreendo que a felicidade é o outro nome da literatura.
NLJ - Para você
escrever é dom ou consequência de trabalho, leitura e transpiração?
UM
-
A resposta já foi esboçada antes. Escrever é, em primeiro lugar, uma
necessidade. E se pensamos na semelhança que pode guardar com outra expressão
de humanidade, é como o amor. Ninguém pergunta se o amor é dom, trabalho,
leitura ou transpiração. É tudo. E guarda semelhança também com as formas da
escrita. Ela se faz de todas as maneiras, do certo, do errado, dionisíaca,
apolínea, sucinta, seca ou larga, barroca. Não há formas superiores, únicas, Há
formas diversas e infinitas, todas dignas do seu nome. Mas se quer uma resposta
sintética, eu digo: necessidade, talento, leitura, trabalho.
NLJ
-
De onde vem o caráter político das suas obras?
UM
-
Natanael, o escritor e crítico literário Flávio Aguiar assim escreveu na
apresentação do livro Soledad no Recife: “Urariano Mota criou uma ficção tão
impressionante que parece verdade”. Com efeito, essa tem sido uma fala dos mais
diversos leitores sobre o que tenho publicado. E não há truque, não há
“técnica”, efeitos especiais de circo para essa manifestação. Trata-se, apenas,
ou melhor, um apenas entre aspas, trata-se “apenas” de que reflito, penso e
medito sobre a memória do que vivi e tenho vivido. Às vezes, ou quase sempre,
lembrança do mergulho da mais funda angústia. Quando escrevo sobre a esquerda
no Recife, quando publico páginas sobre os militantes contra a ditadura, quando
retomo um trauma antigo, do século passado, eu não invento. Ou melhor, procuro
não inventar, na medida da minha
consciência. Aos companheiros mortos e vivos, eu dedico sempre o que escrevo.
Sem eles, eu sou nada, ou menos que nada, se isso for possível.
Agora noto que sou de
esquerda antes de ser de esquerda. Não é um paradoxo, porque pretendo dizer:
sou de esquerda desde a morte precoce da minha mãe, quando eu era um ser em
crescimento aos 8 anos de idade. A revolta foi a mais funda que um homem pode
ter, revolta que com os anos só veio crescendo. Aquilo me pôs num caso pessoal
com Deus. Caso de raiva permanente contra um absoluto que permitia a negação da
vida de modo mais absoluto. Mas para expressar, escrever sobre esse mundo,
desde a infância ao tempo de juventude, eu tive e tenho que estudar muito. Ler,
reler, apanhar para aprender, apanhar para refletir sobre o fracasso. Porque com
revolta só não se faz literatura. Além dela, é preciso conhecer, trabalhar e
trabalhar, ler e estudar. Só assim o sentimento íntimo se torna sentimento do
mundo.
A literatura é uma
atividade sobre a qual sempre estamos aprendendo, não importa a idade do
escritor, ou quantos cabelos brancos tomem conta da sua cabeça. Todos os dias
fracassamos. E como um Sísifo todos os dias tentamos erguer a dura rocha da
felicidade para o alto. Mas ela volta a rolar até os nossos pés, todos os dias.
Então recomeçamos.
NLJ
-
Para você, qual o valor da literatura?
UM
-
Caro Natanael, tento responder com uma reflexão sobre a minha experiência: sempre procurei falar para jovens estudantes
que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso
nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não
fecundar. Aqui e ali, eu era obrigado a ouvir:
“O que eu ganho com a literatura,
professor?”
E com isso, o jovem, quando de classe
média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que
roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado
de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas
dos escritores, a gratidão que eu tinha para quem me fizera homem eu sabia. Mas
não achava o que dizer nessas horas. E ficava a gaguejar coisas absurdas, do
gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava
a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que
dignificou a espécie.
Mas quando a pergunta era feita por
jovens da periferia, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe
média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta; porque não me
via em suas condições e rostos. Mas dos periféricos, era demais. Então eu lhes
falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria
experiência.
Então eu vencia. Então a literatura
vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa;
algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Que importa?
Que se dane o nome, vencia a literatura. Vencia a qualidade maior da
literatura: libertar nos brutos que somos o nosso melhor humano. É algo muito
mais precioso, e eterno enquanto houver humanidade, do que tirar uma nota 1.000
na redação do Enem. Ou, se quiserem, pode ser criado até um anúncio prático de
comercial: com a literatura virem humanos, e ganhem uma nota mil para toda a
vida.
Foto: Reprodução
NLJ
-
Entre as suas obras publicadas, destacam-se Soledad
no Recife (2009), O filho renegado de
Deus (2013) e A mais longa duração da
juventude (2017). Fale-nos um pouco sobre cada uma dessas obras?
UM - Eu prefiro
falar com trechos curtos de cada uma. Assim, talvez eu consiga algum distanciamento,
digamos.
Soledad no Recife – “ 'Eu tomei
conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um barril
estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas
coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto'. O
depoimento da advogada Mércia Albuquerque sobre o corpo de Soledad é como um
flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a
que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas,
retornássemos à câmara de sofrimento. 'A boca de Soledad estava entreaberta' ”
O filho renegado de Deus – Agora
entendo, mãe, o quanto odeio a miséria, no mesmo passo em que amo os
miseráveis. Eu, que sou filho do teu leite, eu que sou filho de Filadelfo, sei
agora que também sou filho da miséria, e assim em terror quero extirpá-la de
mim, com força, vigor, violência: Maldita, o teu nome é crime. Naquela hora sei
que havia movimentos no teu ventre, e depois vinha uma breve quietação, que
parecia opressa, porque respondia com pequenas pontadas laterais, à semelhança
de pequenos braços em convulsão. (Por Deus, eu não queria ter esta memória. Por
Deus!)
A mais longa duração da juventude - “- Eu penso
ás vezes que a pílula é uma caricatura de Goethe - digo.
-
Por quê, rapaz?
- Aquele conceito de Puberdade Tardia,
entende? Goethe falava que certas pessoas têm uma natureza que não se curva à
idade. E recebem então uma puberdade tardia.
- Mas essa idealização de Goethe a
ciência fez real. – Luiz do Carmo me responde. – Por que não usá-la, se a temos
a nosso alcance? O sonho de antes agora está na farmácia.
-
Eu sei. Mas é um artifício, caricatural.
-
Você se nega à sua idade?
-
Eu não sou um velho. Aliás, nós não somos velhos.
-
Eu sei. O tesão de mudar o mundo continua”
NLJ
-
O romance O filho renegado de Deus lhe deu o primeiro lugar do Prêmio Guavira
2014, da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. O que representou essa
premiação para a sua trajetória literária?
UM - Foi a segunda
vez em que ganhei dinheiro com a literatura. Na primeira, com o conto “Uma
noite na Bahiana”, na antologia de humor da Revista Ficção, transformei o
dinheiro em galeto e cerveja no Savoy. No segundo, paguei o IPTU atrasado da
casa. Mas, falando sério, o prêmio apenas confirmou o que eu tinha consciência:
o romance estava à altura de cantar uma mulher do povo, desprezada nos becos do
Recife.
NLJ
-
W. H. Auden, escritor e poeta inglês naturalizado norte-americano, afirmara que
“a mera criação de uma obra de arte é em si um ato político”. Você concorda?
UM
-
Sim, concordo.
O que realiza o político na obra de arte não é o tema. É a sua criação como uma
voz alta de humanidade. E, portanto, uma voz de protesto contra todo tipo de
canalhice ou injustiça. A literatura vai sempre contra a corrente. Ou será
aquilo que Manuel Bandeira falava: “contabilidade tabela de cossenos secretário
dos amantes exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
agradar às mulheres”
NLJ
-
Na sociedade de consumo irrestrito em que vivemos a literatura ainda sobrevive,
isso não é pouca coisa. Em sua opinião, pode-se viver de literatura no Brasil?
UM
–
De literatura
mesmo, é difícil, raro ou impossível. O que se ganha com livros no Brasil é
aquele samba de Pedro Caetano:
“O
que se leva dessa vida
É
o que se come,
É
o que se bebe,
É
o que se brinca, ai, ai...
O
que tenho nessa vida
São
as ruas pra andar”
NLJ
-
Como sabemos, a internet possibilitou novas formas de comunicação com pessoas
do mundo inteiro. No caso específico da literatura, a internet contribuiu para
a sua difusão?
UM
-
Sim, e digo
mais: a internet é capaz de estabelecer ligações e conquistas antes
inimagináveis. Por exemplo, todos os meus romances foram publicados com o envio
de originais por email. Esse é um procedimento que não se recomenda. Há
editoras que até rejeitam. Mas comigo tem sido assim.
NLJ
-
A sobrevivência do interesse por literatura nestes tempos de informações
frenéticas, contudo descartáveis, seria em sua opinião, um estágio cultural já
superado ou não?
UM
–
É claro que
não. As informações descartáveis são a antiliteratura. Onde os jovens, homens e
mulheres encontrarão a expressão máxima do amor e da morte? A não ser que
estejam satisfeitos com a existência de robôs. E logo, logo, os robôs viram
sucata, enquanto a vida se vai e esvai.
NLJ
-
O que você deixaria como mensagem neste momento de distanciamento social
provocado pelo Coronavírus?
UM
–
Leiam os
clássicos. Ouçam Bach. E Pixinguinha também.
*Natanael Lima Jr. é poeta, produtor
cultural e editor
ENTREVISTA COM O ESCRITOR URARIANO MOTA
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Pois é. Grande amigo invisível de todos nós que gostamos da vida. Parabéns Urariano Mota. Lembro ainda de sua crinica: O Pinguim.
ResponderExcluirMuito bem lembrado, MagoSantista. Aquele texto fazia uma referência, sem citar o nome, à Livraria do Cortex, de Cortez & Moraes
ExcluirLivraria do Cortez, quis dizer. Ficava na Ministro Godoy, em Perdizes,nos fundos da PUC paulista
ExcluirPois é. Grande amigo invisível de todos nós que gostamos da vida. Parabéns Urariano Mota. Lembro ainda de sua crinica: O Pinguim.
ResponderExcluirAcabo de ler a entrevista. Excelente, Urariano! Fiquei te conhecendo um pouco mais - o que fez a admiração crescer bastante! Mais sucesso à frente! Parabéns mais uma vez ao DCP e seu fiel editor, poeta Natanael Lima!
ResponderExcluirMuito obrigado, Virginia Leal, poeta, fiha de poeta e poesia
ExcluirMeu caro Urariano. Foi com enorme alegria que soube você como o entrevistado de hoje do DCP, este veículo de difusão integrado com a nossa vida literária. Perguntas argutas do Natanael, respostas lúcidas que deu as mesmas faz-nos conhecer "por debaixo dos panos" o romancista de uma época crucial em nossa história, de como lembrá-la para sempre.
ResponderExcluirMuito obrigado, poeta José Luiz Mélo. O seu comentário nos honra a todos, entrevistador, entrevistado, literatura.
ResponderExcluirMais um soco na demência cotidiana. Com o aval de Natanael Lima Jr. Parabéns a todos.
ResponderExcluirMuito obrigado, Ramos Sobrinho. Abração
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