TransWinter

CONTO DE FERNANDO FARIAS (SUPER HOMEM)



 Fernando Farias/Foto:divulgação




Aqui estou, no inverno gelado da cidade de Havana, parte do seleto grupo de senhoras ociosas que se protege da neve no aconchegante Hotel Fidel. As tempestades e as fezes pré-históricas impedem as naves de flutuar. A inconstância do clima neste verão causou transtornos nas comunicações, provocando o cancelamento do Congresso Mundial das Criadoras de Tigres Brancos.

Mais de cinco mil anos já se passaram desde a primeira explosão atômica que destruiu a cidade de Hiroshima no antigo Japão.

Vivo num mundo sem passado, todos os registros históricos se perderam num emaranhado de informações complexas e deturpadas pelo tempo. Dados sobre a história da humanidade não podem ser aceitos como verdadeiros. As referências não são confiáveis. As bibliotecas são consideradas museus de ficções. Uma guerra mundial, descrita nas máquinas virtuais, pode ser verídica ou, apenas, brincadeiras inventadas naquela mesma manhã por um grupo de crianças em jogos de criatividade.

Os fanáticos, como este jovem de barba vermelha que está à minha frente, são considerados doentes mentais justamente por tentarem encontrar veracidade e algum elo real entre bilhões de relatos históricos.

 Neste ambiente cercado por tigres brincalhões, as mulheres se divertem a ouvir os argumentos inflamados do líder religioso. São muito engraçados esses bizarros pesquisadores do passado. Garimpando culturas mortas e tentando reviver lendas no mundo de hoje.

 - Permita-me interromper, senhora, mas gostaria de fazer um pequeno reparo, diz o jovem, não são lendas, o estudo do passado é muito útil. Revelam conhecimentos perdidos que podem ajudar a melhorar o nosso futuro.

- Mas vocês só falam de lendas, romances fantásticos, deuses mitológicos, guerras, destruições e até de histórias de amores. Nada é real em seus estudos.

- Senhora, é possível demarcar uma determinada época e estudá-la. Temos grandes bibliotecas com antigos livros, jornais, filmes. Período de um ano da história pode levar uma vida inteira para se estudar.

 Ao meu lado, vestida com um quimono metálico que oscila de cor a cada emoção, diz:

 - Acredito que podem até mesmo ter existido essas seitas e suas estranhas filosofias no passado. Digamos que vocês estejam certos. Que realmente seus mestres realizaram milagres. Mas, eu não entendo o porquê de vocês desejarem impor comportamentos, regras e idéias mortas às pessoas na atualidade.

 - Desde que a raça humana chegou a este planeta, vinda, quem sabe, da constelação de...

O rapaz pacientemente espera terminar o nosso riso irônico ecoar na ampla sala. A tolerância infinita, a compreensão profunda e a disciplina secular são regras em sua fraternidade. Respira fundo e espera que voltemos à normalidade. Observa nossos olhos lacrimejarem de tanto rir. Percebe que não deve se aprofundar sobre a crença da raça humana ter vindo da estrela Aldebaran.

- Grandes conhecimentos foram perdidos. O que nós chamamos de religiões, superstições e filosofias antigas eram, na verdade, as ciências, os grandes conhecimentos e práticas sadias de vida para a humanidade;

Com um pequeno tigre no colo, a mais musculosa das mulheres, vestida de preto, tenta impor um tom sério ao debate e questiona o religioso, mesmo sabendo que isso só contribuía para desmascará-lo e provocar mais risos das companheiras.

- Mas onde estão estes conhecimentos? Deuses invisíveis dominando nossos destinos em troca de promessas celestiais após a morte?  Fábulas, mártires, preceitos de vida castradores, imagens santificadas? Será que após minha morte vou encontrar esse homem voador no planeta vermelho?

- Amigas, peço agora um pouco de vossas atenções e toda beleza de vossos conhecimentos. Permita-me ajudar-vos com novas informações para que possamos nos compreender e até fomentar mais os vossos sensos de humor.

 A voz agora macia e imperativa faz com que percebamos o incômodo que os risos provocavam no religioso. É um jovem pesquisador, elegante, também um criador de tigres, e que merece ser ouvido com atenção como se faz com os tigres selvagens, sem provocá-los.

- Nossa Eclésia é conhecida popularmente como “Templo do S”; Usamos esta letra, o antigo símbolo da letra S, na cor vermelha vazada num polígono amarelo. É um símbolo bonito presente em toda antiga literatura.

No cruzar de braços, quase que sincronizado, demonstramos a rejeição àquelas palavras e ao desconforto estético das três cores destacando uma letra morta e imprecisa. Apressa-se em qualificar como magnífico e belo aquele símbolo primitivo de traços infantis.
- A nossa fraternidade preserva em nossos arquivos documentos, desenhados em lâminas de papel, comprovando a existência no passado, em nosso planeta, de um homem chamado Clark Kent. Ele possuía uma força descomunal e viveu na Terra, numa cidade chamada Metrópoles. Nós somos descendentes diretos dos habitantes da grande cidade, de onde desceu dos céus, ainda criança, numa cápsula espacial, vindo do planeta Krypton. O grande Super-Homem viveu na terra há mais de cinco mil anos segundo nossas profundas pesquisas.

Os tigres percebem o silêncio das domadoras, tentam brincar e conquistar carinhos. As mulheres sentem-se culpadas, como se os risos e as brincadeiras tivessem provocado o louco a falar mais e mais. E agora, sem entender aquele vocabulário hermético, estamos presas nos assentos à espera de uma oportunidade de interromper a patética situação.

- O Super-Homem era dotado de poderes especiais, podia voar, tinha visão de raios-X e uma força que podia mover montanhas. Acima de tudo, o Super-Homem ajudava os governos e as autoridades policiais da antiga América. Um dia, após cair numa armadilha de criminosos, nosso Super-Homem foi morto com a única coisa que o fazia vulnerável: uma pedra de kriptonita, uma simples rocha do seu planeta de origem. Foi amarrado a uma destas pedras verde, seu sangue evaporou-se, morreu consciente, sofrendo as dores e vendo a vida se esvaindo. 

Respirou. Em tom grave proferiu uma sentença:

- Nunca, em toda história da humanidade, um ser passou por tantos sofrimentos. Foi a morte mais trágica jamais vista.

O vocabulário desconhecido ressoa no grupo sonolentamente. Tememos se não estamos sendo observadas por outros grupos, pois seria uma vergonha demonstrar falta de inteligência em ouvir, em silêncio, um homem tão jovem apaixonado por lendas.

- Mas o que vocês desejam? O que esperam com isso ou prometem aos seguidores?
         Nossos olhos raivosos crivam a domadora africana, que fez a pergunta, uma das mais jovens do grupo. A pergunta ridícula levaria aos novos argumentos. Anima o doente a descrever mais fantasias como se fosse alvo de alguma atenção séria de nossa parte.
  
- Minhas queridas irmãs. Esperamos um dia reencontrar o planeta Kripton em algum lugar no espaço. Os cientistas que fazem parte de nossa amada ordem tentam encontrar esse planeta em algum sistema que a estrela central seja vermelha. Sabemos que, pelo que diz as antigas escrituras, os terráqueos, podem ter superpoderes em Kripton, assim como eles terão os mesmos superpoderes aqui em nosso planeta iluminado por um sol amarelo.

- Mas se existem bilhões de estrelas vermelhas por certo levarão trilhões de anos para chegar lá. - interrompo abruptamente tendo o cuidado para não dar pausa – Mas, como eu sei que após os meus 150 anos tenho o direito ao meu suicídio, pela lei, por certo não terei tempo de ter esses super-orgasmos!

A gargalhada foi um alívio. Finalmente, encontrei uma brecha na estranha oratória para retomar o clima de alegria. As palavras seguintes do religioso nem são percebidas, levantamos e a conversa entre nós é festiva, como se aliviando de uma câimbra.

- Só quem tem a verdadeira fé e faz parte da nossa fraternidade, poderá um dia viajar em nossas naves para Kripton. Estamos aqui falando a boa nova àqueles que seguirem o Super-Homem, esses poderão conhecer Kripton e serem dotados de superpoderes.

Os animais se agitam e saltam sobre as domadoras, agora felizes e indiferentes à presença do único homem no grupo. Um dos tigres salta sobre a mesa, fazendo cair as tulipas transparentes com o vinho azul. O estilhaçar soa no ambiente como vidros metálicos se espatifando.

 - Meu vinho, meu vinho. – lamenta a domadora sem cabelos.

 - Continuarei orando para que o espírito do nosso grande Super-Homem ajude a atrair novas almas para o caminho da salvação. Para que possamos ser elevados ao distante planeta Krypton. Amém. 

Dispersamos.

 Certa vez li em alguma tele-tela que "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas das coisas que acontecem na terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus". Parece que foi um homem chamado Homero de algum lugar da antiga Europa. Mas nem sei se ele existiu mesmo.


 Vou dormir pensando nas orquídeas de Marte.
CONTO DE FERNANDO FARIAS (SUPER HOMEM) CONTO DE FERNANDO FARIAS (SUPER HOMEM) Reviewed by Natanael Lima Jr on 07:01 Rating: 5

5 comentários

  1. Gostei bastante, me trouxe uma série de questionamentos à partir da história, religião e mitologia. Percebo a especulação da história e do futuro, a necessidades da criação de um Deus e como os mitos podem influenciar muita coisa. Talvez tenha visto muita coisa e a explicação para tanta especulação seja simples. Um abraço

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  2. Muito bom, Fernando! Visão simples e direta. Amo seus contos!

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  3. Muito bom, Fernando! Visão simples e direta. Amo seus contos!

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  4. Eu amei ,Sinceramente eu adorei e escrito com palavras complexas e meu Deus ,tem um enredo ótimo de você querer ler mais e mais .gostei muito mesmo

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