“A FUNÇÃO SOCIAL DO POETA”: POEMA DE RICARDO DOMENECK*
Postado por DCP em 10|04|2022
A função social do poeta
a Daniel Saldaña París
A Perse e Parra, o poeta
funciona tal qual mala
conciencia de la época.
Pergunto, se os traduzo:
consciência má? Pesada?
Peso na ou da cuja dita?
Para uns, trata-se do id
dos ânus do tempo, R.G.
da lama entre as linhas
de mapas. Quiçá raio-X
genérico dos portadores
dos XX & XY de um país.
Outros estão mui certos
de que esta sua fatura
aumenta deveras o PIB,
ou que sua voz é o GPS
dos perdidos en la noche
oscura. Quando juntos,
dão-se ares de BNDES.
Entre os egos, talvez
seja o poeta o super-
ego do seu momento,
como uma tia chata
que ao invés de dizer
em alto e bom tom:
"coma logo as ervilhas",
recorre a vários métodos
obscuros de persuasão,
"esta ervilha é um mundo",
"esverdeadas dar-te-ão
eterna vida", "este legume
é como o planeta coberto
de gramíneas", "das vagens
às várzeas da tua louça",
"estas trezentas soldadas
são espartanas, faz agora
do teu prato as Termópilas",
"ervilha minha senil que
te comeste, tão logo desta
janta descontente", "pelo
menos um fruto em teu
ventre, solteirona". Ainda
por cima nos tantaliza
com suas tautologias:
"a ervilha é verdinha", etc.
É óbvio que os bar-roucos
prefeririam: "Ervilha-Fénix
das aias do escarra-velhos
do Himalaia, iactantia est".
Pois se alguns há séculos
insistem em lembrar-nos
que o céu é azul, pássaros
voam e as flores se abrem
no mês de ____ (escolha,
leitor, o seu hemisfério).
Tia chata, recorra à sátira,
pois os subnutridos não
são moucos só ao riso:
"Não querias comer Elvira?
No interregno, às ervilhas!"
Esqueçamos os legumes.
Os mortos-vivos só dão
ouvidos a energúmenos.
Por mim, possuísse
algum alto-falante
potente ou bastante,
esgoelaria: "devorem
logo toda essa merda
no prato, nos poupem
o trabalho", mas ao fim
sei que ninguém
comeria, anyway.
É como passar a vida
a buscar novas formas
para olha o aviãozinho.
Ai, de Sísifo,
já me basta
o phallus.
Dirão que um poeta,
ao dizer isso, pratica
a auto-sabotagem.
Ora encerremos,
dessarte, com algo
ambíguo e suficiente
para as meditações
em nossos próximos
Minutos de Sabedoria:
"Poeta: geringonça
entregue a ciclos
circadianos sem
qualquer zeitgeber."
Cansa-me a beleza.
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Ricardo Domeneck, 2012. Postado originalmente em 24 de junho de 2012.
O último livro publicado pelo coeditor da Modo de Usar & Co.
intitula-se Ciclo do amante substituível, lançado em janeiro deste ano
pela editora 7Letras. Sua primeira publicação na Alemanha, onde vive, sairá no
segundo semestre, uma antologia com poemas extraídos de seu último livro e do
seu livro de estreia, Carta aos anfíbios (2005), assim como textos
inéditos em livro.

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