TransWinter

SOBREVIVENTES (CONTO) DE LOURDES NICÁCIO

 

Postado por DCP em 22|05|2022

Por Lourdes Nicácio e Silva*








Lourdes Nicácio e Silva|Imagem: Divulgação








Dezembro. O calor era intenso, mesmo àquela hora da tarde, em que o sol estava quase desaparecendo. Algumas crianças de rua tomavam banho no rio Capibaribe, junto da Ponte Princesa Isabel. De repente, dois meninos afastaram-se do grupo:

 

– Tá na hora, bicho – disse um deles, coçando os olhos avermelhados.

 

– Tô esquecido, não, meu veio. Vamos lá! – respondeu outro.

 

Nadaram ambos em direção à ponte. Ao atingi-la, prepararam-se para o ataque. Estavam mascarados com a lama negra do rio. Homens e mulheres se assustaram. Caminhavam apressados. Protegiam as bolsas e as sacolas com as compras do final de ano. Olhos fixos nos meninos que, em seguida, arrancaram uma carteira do bolso do próprio guarda daquela área.

 

O homem de botas, um tanto desgastadas pelo trabalho diário, considerava-se a última pessoa a ser perseguida daquela forma. Na verdade, quem poderia imaginar que pivetes como aqueles iriam atacá-lo? O povo começou a agredir o guarda: “Pega ladrão, molenga! Corre, incompetente, corre!” Ele não se movia. Estava surpreso. Humilhado. Observava os pequenos correndo, com sua carteira, ganhando distância. Desapareceram. Deixaram apenas marcas de pés enodoados pelas águas poluídas do rio.

 

Chegou, por completo, a noite. Havia lua cheia no céu e lâmpadas acesas nos postes circunvizinhos. Mas não conseguiram iluminar aquele negro manto estendido: o rio, o mangue e os meninos envoltos em névoas de fuligem.

 

Todos se foram. O guarda também, desertando da ponte. Um professor, assistia à cena, no calçadão da Rua da Aurora, que ficava, ali, perto. Dos outros garotos que acabavam de deixar a natação e ganhavam as ruas do centro da cidade, um se aproximou:

 

“Me dá isso !” – arrancou-lhe das mãos uma mochila.

 

Quando viu que se tratava apenas de livros, jogou-a com tanta força, nas águas, que se formou um grande círculo de maretas turvas.

 

– Paulinho, meu filho! – exclamou ao afastar a lama daquele rosto adolescente, com os dedos, tentando defender-se.

 

– Meu Deus, foi mal! – falou, reconhecendo seu professor de Matemática que, de olhos arregalados e queixo caído, imaginava-se diante do irreal. Era o seu aluno que estava ali. Fazia muitos dias que não assistia às aulas. Deixou-se sentar na calçada. Na verdade, deixou-se jogar como um saco de coisas quaisquer. Não observava nem as alças da sua mochila jeans sinalizando despedida rumo à parte mais profunda do Capibaribe.

 

Cabisbaixo, o menino deu meia-volta. “Como pôde acontecer isso? O professor não merecia... Vive ralando tanto pra sobreviver... Foi mal... Agora que não volto mais, pra escola, pra ver a cara dele...” – pensava, afastando-se, rapidamente, sem olhar para trás.

 

O professor levantou-se – o seu ônibus chegara na parada, ao lado, com a freada estridente de sempre. Subiu. Tirou do bolso da camisa um vale-transporte. Entregou-o ao cobrador, sem aquele costumeiro “oi” ao passar pela borboleta. Sentou-se. Era um homem cansado. Desceu no bairro de Águas Compridas, onde residia, desde que chegara do Sertão, tentando mais oportunidades também para a família.

 

Dormiu muito tarde naquela noite. Conversou com a mulher, checou a vida escolar dos filhos. Orou em silêncio. Refletiu. No outro dia, na sala de aula, o professor pediu que guardassem os cadernos de Matemática durante alguns minutos. Falou sobre direitos e deveres de todo cidadão; sobre a importância do rio Capibaribe para a cidade do Recife. Estava preocupado. Falou com tanta emoção, que a turma o aplaudiu de pé. Antes de sair, apertou a mão de Paulinho que o ouvia, atentamente, sentado na primeira fila.

 

 

 

(Do livro SOBREVIVENTES, contos, Lourdes Nicácio e Silva, 2ª edição, 2019)


 

.........................................................................

 

 

*Lourdes Nicácio e Silva é pernambucana da fazenda Canabrava pertencente ao município de Belém do São Francisco. Reside no Recife desde 1980. Professora, poeta, escritora, editora. Membro da Academia Recifense de Letras e da Academia de Letras do Brasil-ALB PE. Seus livros, estudados nas escolas e universidades, renderam prêmios, homenagens, peças de teatro, monografias, comendas entre outros. Idealizou e coordenou, com a poetisa Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, o Programa Academia/Escolas da Academia Pernambucana de Letras, editora da revista de Literatura Novo Horizonte. Autora de vários livros publicados. 



SOBREVIVENTES (CONTO) DE LOURDES NICÁCIO SOBREVIVENTES (CONTO) DE LOURDES NICÁCIO Reviewed by Natanael Lima Jr on 23:43 Rating: 5

3 comentários

  1. De coração, fiquei tocada com o seu conto querida Poeta Lourdes Nicácio! Você colocou o tom ou dose exata de verdade, criatividade/emoção! Como tenho a memória visual, consegui ver todas as cenas e personagens de seu SOBREVIVENTES! bRAVO!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sensibilizada com seu comentário, poeta e amiga Vernaide Wanderley. Muito obrigada. Muito.

      Excluir
  2. Muita emoção ver o conto Sobreviventes no conceituado site DCP e comentado com tanta sensibilidade pelos leitores. Agradecimentos a todos, especialmente ao editor e poeta Natanael Lima.

    ResponderExcluir

Recent in Recipes

3/Food/post-list