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A FAZENDA E O RIO, CONTO DE LOURDES NICÁCIO

Postado por DCP em 13/06/2021

[Curadoria de Natanael Lima Jr]










Lourdes Nicácio é escritora e editora

da Edições Novo Horizonte I Foto: Reprodução






A FAZENDA E O RIO

 

                      Lourdes Nicácio* 

 

 

 

 

 

Ilustração da Fazenda Canabrava, Sertão do São Francisco,

de autoria de Ricardo Cunha Melo

 

 

 

 

 

No Sertão pernambucano, às margens do rio São Francisco, nasceu a fazenda Canabrava, no município de Belém do São Francisco. O nome, segundo antigos moradores, tem origem numa planta silvestre denominada cana-brava, largamente encontrada na região.

 

Lá, as noites de lua cheia eram aguardadas com ansiedade. Nos terreiros as pessoas se espalhavam contando e ouvindo histórias, lendas típicas de toda a área ribeirinha. Mas, quando não havia lua, a escuridão causava desespero, desassossego.

 

Naquela época, as crianças observavam o pôr do sol. Gostavam de ver os arbustos, os barrancos, as nuvens, tudo pintado de ouro. Às vezes, os pais tocavam as cabecinhas deslumbradas e comentavam:

 

“Tem lagarta que se encanta. Vira uma borboleta que é a coisa mais linda do mundo. Mas este entardecer tão bonito vai se transformar numa noite negra como um urubu”.

 

Os comentários não se estendiam muito. Chamas de escuridão começavam a crescer com rapidez. A meninada dormia cedo. Todos dormiam cedo.

 

No outro dia, ainda com os candeeiros acesos, a fazenda despertava: nos fogões de lenha ou em trempes, ferviam-se panelas de leite de cabra, batatas-doces, jerimuns e macaxeiras para a primeira refeição; alvoroçavam-se os bichos nos quintais e tabuleiros; nos arbustos, cantavam juritis, canários, sabiás, rolinhas, outros pássaros. Tudo se agitava.

 

Na fazenda Canabrava as pessoas envelheciam devagar. A força do rio não reclamava ponteiros de relógio. A liberdade comandava a beleza de ver e sentir. O canto dos galos era o mais verdadeiro anúncio das madrugadas.

 

A fazenda crescia porque tinha exatamente o ritmo, o tamanho, a fertilidade do rio. Assim era a vida. Intensa. Corria como o próprio rio. Ia, ia, apenas ia. Os remeiros, pescadores, lavadeiras respeitavam as águas do Velho Chico.

 

“Ninguém deve tocar o rio enquanto ele dorme” – advertiam.

 

Plantavam em suas margens e delas colhiam abóboras, melancias, batatas-vinho, brancas, vermelhas. As ilhas, sagradas oferendas do Velho Chico, douravam-se completamente ao pôr do sol. Bailavam entre as margens, eram um enorme barco carregado de árvores frutíferas, pássaros, borboletas. Frutos maduros, os moradores comiam sem interrogatório. Eram doces, eram, sim. Ficavam fartos, ficavam. Isso bastava.

 

Quantas vezes eu, ainda criança, subia nas proas das canoas ancoradas. Declamava, sem saber, a alma cheia de versos a serem escritos por mim no futuro:

 

Bem dentro de mim armazenei

do São Francisco ilhas, barcos, capinzais

Cajus, goiabas, peixes, frutos de água doce

o clima fresco, o cheiro verde, o arrozal.

 

Moinhos, rodas d’água, as carrancas

as pedras, os banhos, as roupas brancas

Gestos florais de cachoeiras e águas mansas

cheiro de argila e bebedouro nas vazantes.

 

Moitas, arbustos, diademas de cipós

sombras da fauna, maretas, faixas de areia

vitalidade, permanente encanto

tesouro antigo dos palácios das sereias.

 

A imensidão dos campos e rebanhos

culto aos pastores, agricultores, remeiros

Lições de vida, pores do sol, rituais

que o vale tece como artesão dos milagres.

 

Sementes, pétalas, raízes em superfície

balsas de adubo rastreando as margens ativas

Daí por que de mim emanam, sonhos, melodias

ou seiva do rio inteiro, em ritmo das águas vivas.

 

Passado ou futuro, qualquer tempo era tempo de paz. As águas entoavam um canto limpo, revigorado. A voz do rio era a voz do povo; a voz do rio era a agilidade dos peixes; a voz do rio era a transparência das nuvens despoluídas.

 

Foi há muito tempo.

 

Hoje, distante daquele santuário das águas doces, aflige-me a velocidade com que corre o sol. E a lua? Ninguém mais tem tempo de observar-lhe o cavalinho de São Jorge, porque ela, a lua, não tem mais as mesmas estradas noturnas. No quarto, na cozinha, no próprio computador, há relógios que consomem rápido a vivacidade de muitas das nossas crianças interiores.

 

A verdade, entretanto, é que a infância flui, independentemente da época ou local. Recordo, aqui, no Recife, com infinita saudade que o rio ali era manso e, à noite, parecia um homem cansado, estirado na terra. Mas quando os primeiros raios surgiam, avistavam-se maretas ou pequenas ondas prateadas pulando.

 

Todas as águas faziam girar rodas d’água, alimentavam plantações, levavam o povo a tocar bem a vida. Os canabravenses, povo mais índio que negro e branco, veneravam também o sol.

 

“Graças a Deus que temos tudo: o sol, o rio e a terra” – afirmavam.

 

O São Francisco, ali, não é mais aquele grosso cordão ou longo corpo que se espreguiçava entre lençóis de capim. Virou lago. Consequência da barragem de Itaparica. Mas o São Francisco é o meu rio da infância: canto, vida, claridade em mim.




*Lourdes Nicácio e Silva é pernambucana da fazenda Canabrava pertencente ao município de Belém do São Francisco. Reside no Recife desde 1980. Professora, poeta, escritora, editora. Membro da Academia Recifense de Letras e da Academia de Letras do Brasil-ALB PE. Seus livros, estudados nas escolas e universidades, renderam prêmios, homenagens, peças de teatro, monografias, comendas entre outros. Idealizou e coordenou, com a poetisa Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, o Programa Academia/Escolas da Academia Pernambucana de Letras, editora da revista de Literatura Novo Horizonte. Autora de 10 livros publicados, além de organizar 8 obras temáticas.

 

 

*[Conto extraído do livro “Os sobreviventes”, 2ª edição, Edições Novo Horizonte, 2019.]



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