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SINFONIA DO CAOS, DE EUGENIO JERÔNIMO

 

Postado por DCP em 25/04/2021






Eugenio Jerônimo dedica-se à poesia e à prosa

Foto: Reprodução






Eugenio Jerônimo é natural de Iguaracy-PE, Sertão do Pajeú. Membro da Academia Cabense de Letras. Mestre em Linguística pela UFPE. Escritor e professor. Dedica-se à poesia e à prosa. Lançou os livros Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (2016, poemas) e O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia, em coautoria com Geraldo Freire). Acaba de lançar (2021), em parceria com o cantor e compositor Zé Linaldo, o CD Um pé de tempo – música de raiz nordestina. Está trabalhando atualmente em roteiros de cinema e séries.

 

Para Eugênio, “o poeta e, em consequência, a poesia que ele produz tem obrigação de cumprir um papel social. É dever moral do poeta colocar sua arte ao lado dos oprimidos, dos espoliados, dos injustiçados. O que ele não pode fazer é abrir mão do rigor estético em nome de uma escrita panfletária. O poeta tem de ser um denunciador e um anunciador, um preditor do futuro. Não por acaso, um nome antigo para poeta é vate, aquele que faz vaticínios. Se o poeta é alguém que enxerga a realidade não ao nível do chão, mas de camadas subterrâneas e de espaços aéreos não pode cometer o ato pusilânime de fazer arte pela arte, sem sangue social.”





SEIS POEMAS DE EUGENIO JERÔNIMO*







SINFONIA DO CAOS

 

A certeza dos abutres

Tece as trevas do pra sempre

Alada nuvem palustre

Impõe ao sol absente

Legiões de pernas erram

Sem governo ou oriente

 

 O blackout solar nega

A taça de luz diária

A turba se arremessa

Contra a flor das luminárias

Feito insetos que se punem

No sexo fatal dos lumes

 

Cometas de fogo aflito

Os olhos boiam inconsúteis

As linhas de ansiolíticos

Cosê-los tentam inúteis

 

Mais que insônia coletiva

Diáspora de catatônicos

Os corpos desaprenderam

O armistício do sono

 

O céu deflagra magma

Perverso encena interstício

Esperança envenenada

Pra mais intenso o suplício

 

O mar brame em monstro amorfo

Assume as formas que engole

Palácios, templos e torres

Multidões em largos goles

 

O mar se projeta ao céu

Ao mar o céu se curva

Este consórcio de extremos

Comprime a noite mais turva

 

Não sobrou ave que avoa

Não sobrou homem que fala

Não sobrou árvore que árvora

Não sobrou casa que mora

Não sobrou peixe que nada

Nada, nada, nada, nada

 

E na disputa final

O mar e o céu esgrimam

E no nada do pós-caos

Os dois se aniquilam

 

 

MORTE EXPRESSA

 

Perdida não é a bala

Perdida é a parda vida

Anoitecida na vala

Pré-manhã interrompida

Só mais um traço no gráfico

Débito na conta do tráfico

 

A bala perdida é certa

Erra o escudo palácio

Fere sempre a mesma meta

Acaso só de barraco

O projétil sabe o CEP

Com uma mira seletiva

Entrega a morte-sedex

A uma mera Maria

Bate na porta do peito

Do target dum negro Silva

 

Antes do tiro, o gatilho

Antes do gatilho, o dedo

Antes do dedo, a ideia

E antes dela o segredo

O chumbo é o preço do ouro

A pólvora, o cheiro do medo

 

 

FALA MANO

 

Fala mano

Perdeu, playboy

Cuspiu sem dó

O boy do outdoor

 

Loura face

Navegando num irado skate

De roupa de grife

Dominando a superfície

 

Com minas em roda

De tênis muito foda

E desde sempre ele me disse

Passe o futuro ou a vida

Respondi com voz sofrida

De vida eu tô duro

Pode levar meu futuro

 

E a galega da cerveja

Com espelho de Madona

Diz me beba

Me coma

 

A camisa x apela me vista

A modelo tísica em felicidade explícita

Cochicha me dispa

 

Espelho mármore de um ap

Imploram me more

Canta a Disney ê

Me explore

 

O motor envenenado

De mil cavalos alados

No já vai foi

Paquera me voe

 

O mundo em propaganda

Me assalta os desejos

E me fecha a porta da grana

 

 

QUEBRADAS

 

Aqui não tá no mapa

Mais marginal dos brasis

Não dá primeira capa

Aqui não é o país

 

A ONU não sabe

A ONG não pode

O Estado não sobe

O take não cabe

O medo não dorme

 

O censo não mede

Nenhum deus acode

Até o Google se perde

Nos becos dos anzóis

 

O drone não pega

O zoom não revela

Este não onde

Qualquer dia se rebela

 

Tudo que esconde

Qualquer hora explode

Tudo que pede

Tudo que pode

Tudo que fede

Tudo que fode

 

 

MENOS 3 A MENOS 6

 

Faz um domingo de vidro

No largo da estação

O azul do céu estendido

Balançante bandeirão

Um bom clima reunido

Pro nobre esporte bretão

 

Do Morro do Vai-não-Volta

Marcha uma facção

Baixa em contrarrevolta

São Jorde do Quebradão

Açulando a fúria solta   

Hasteiam a morte na mão

 

Do palco dessa cortina

O clássico se desenrola

Pescoços perdem cabeças

As cabeças viram bolas

 

Nas disputas renhidas

Chutam cabeças adidas

 

Ô, ô,ô, artilheiro matador

Ô, ô,ô, artilheiro matador

 

Pavor, vapor de pólvora

Em polvorosa o céu fuma

O cheiro vermelho acende a chusma

O fogo acelera, delira a galera

 

No placar carnificina

Vai- não-Volta menos 3

Do Quebradão menos 6

Agora o derby termina

 

Pode chamar a polícia

Ou a milícia

O setor de balística

E o homem da estatística

 

Zebra distante,

A paz não tem chance

Domingo vai ter revanche

 

E quem perdeu a live

Deste esporte cáustico

Pode ver o sumo resumo

No fantástico Fantástico

 

 

MONUMENTO A DR. GUILLON

 

Restaurada a moral e os bons costumes

A família, o respeito, a tradição

Volta a lei a rosnar dentes de gumes

Guillotin, Hamurabi e talião

 

O passado floresce no presente

Fecha as portas da ordem o seu ferrolho

Por um dente se cobra agora um dente

Por um olho se cobra um outro olho

 

A Justiça é reserva para os justos

Mas severa é a pena da caterva

Não se trata a roseira, nobre arbusto

Com a foice que extirpa a brava era

 

Longe o medo do ferro se desfez

A ferrugem do vício fez-se espelho

Se não flora o temor, pendão das leis

Não há leis, mas de vó ternos conselhos

 

De tão pluma a pena que vigia

Dava às traças os fólios do mais sacro

Transformando o castigo em honraria

A Justiça num reles simulacro

 

Restaurando o códice do principio

Prevalência da lança e da masmorra

Contra a arte obscena e o senso ímpio

Se a paz cobrar sangue, o sangue escorra

 

 

*Poemas integrantes do musical Som do Sangue – textos de Eugenio Jerônimo e músicas de Zé Linaldo.


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