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DO MINHO AO ATLÂNTICO: NÉLIDA PIÑON E A ESPERANÇA EM SAGRES


Por Diego Mendes Sousa*

Postado por DCP em 14/02/2021

















A literatura de Nélida Piñon (1937-) é uma odisseia empreendida com o espírito do tempo. Seu cabedal narrativo possui sagacidade e sensibilidade.

 

Nélida Piñon arvora as suas metáforas a serviço da aventura vocabular e da feitiçaria verbal, com uma fecundidade estética fascinante.

 

Um dia chegarei a Sagres (Record, 2020) é um romance refinado e épico. Largo murmúrio da história de Portugal, dos hábitos e dos costumes campesinos e da voragem andarilha e dicotômica da vida. Nélida descreve: “Um convite para um dia abandonar o berço onde nasci, após esgotar as agruras do campo.”.

 

A poética de Nélida Piñon atravessa a fortaleza dos mitos. É um cântico de devoção à língua portuguesa e à força camoniana dos sofrimentos humanos.

 

Seu estilo preserva uma crueldade aflitiva que encanta e consola. Cruzar as quinhentas páginas de Um dia chegarei a Sagres é fazer-se conhecedor de uma herança secular legatária do sangue virulento dos anônimos. Expressa: “E dando trégua à dor, explicou, referindo-se às moedas, que não me ofertava uma herança capaz de livrar-me das adversidades (...)”.

 

A personagem principal, Mateus, que dialoga em primeira pessoa, me entrelaça em sua triste peregrinação, do Minho, no norte de Portugal, fronteira com a Galiza dos espanhóis, até Sagres, no Atlântico, no mar sulino português.

 

A ficção encontra cenário em um Portugal rural, com inscrição no século XIX. A narração segue os seus atos passados, presentes e futuros, em flutuações não cronológicas e arrebatadoras.

 

Mateus é um velho que rememora as perturbadoras passagens rústicas da sua biografia exótica e esclarecedora: “Na velhice se sofre uma espécie de degredo.”.

 

Identifico algo renovador, quando Nélida Piñon introduz o pretérito profundo, aquilo que está no inconsciente mais remoto da alma lusa: anterior e alegorizado com a history das grandes navegações, da sagração dos animais como deuses, da escravização dos africanos e dos indígenas, da descoberta dos novos mundos, além oceanos, e das recriações sobre a nobreza portuguesa e as suas fracassadas utopias.

 

Creio que as revivescências de Camões, de Vasco da Gama e do Infante D. Henrique acentuaram as peripécias de Mateus e do seu contínuo lamento de ser um peregrino pobre e gestado no ventre de uma meretriz.

 

Comovo-me com a relação confidente entre o avô Vicente e o neto Mateus revelada em Um dia chegarei a Sagres. O livro traz um testemunho de um afeto invencível, exaltado na memória: “A fortuna é feita de memórias. Vive-se mais do que muitos.”.

 

Com elegância, Nélida Piñon confabula sobre o erotismo, a paixão platônica, a luxúria carnal entre dois homens (Mateus e o Africano), o desespero errante, o pecado sob o viés do Cristianismo, o segredo inviolável, as visões impuras e as suas manifestações mais cruas.

 

Diz Mateus: “São estes pressentimentos que nos abatem ou distinguem a nossa espécie em meio ao matagal da existência?”.

 

Sem esquecer os contornos femininos contraditórios e misteriosos como os de Joana, Matilde, Leocádia e Amélia. Faustosamente filosófica e irônica, Nélida Piñon entrega: “O melhor do meu ofício é o que os homens relatam em tom de segredo. São lamúrias que não repetem em casa. Sem falar que juram por Deus jamais voltar ao lar onde são infelizes. Mas para onde irem?”.

 

Um dia chegarei a Sagres é uma acusação ao revés. É sobretudo um discurso sobre a esperança e de como os sonhos e as ilusões movem o coração dos homens.

 

De maneira magistral, Nélida Piñon conduz uma personagem pelos seus desvelos e expectativas. Depois de Sagres, restará ainda Lisboa e a espera inacabada, assim como as lágrimas e os silêncios desatados pelo destino.

 

Neste 2021, Nélida Piñon festeja os seus 60 anos de dedicação ao ofício de escrever, cujo marco fundador é a peça Guia-mapa de Gabriel Arcanjo.

 

Seu périplo é de uma vencedora. Um dia chegarei a Sagres é o coroamento de uma carreira humanística luminosa, que merece todas as honras da pátria e o amor de uma nação inteira.

 

Nélida Piñon soube ser integral e substantiva, e continua a dar esperanças a seu país visceral, com lucidez e quimera. Uma filha de Homero e uma fidedigna sucessora de Machado de Assis.

 

A obra, Um dia chegarei a Sagres, lançada no segundo semestre do ano de 2020, já está em sua terceira edição. Somente uma escriba do porte intelectual e artístico de Nélida Piñon consegue esse feito editorial no Brasil. Trata-se de um Clássico e de uma Mulher inesquecível.




*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Professa extraordinária admiração por Nélida Piñon. 









Nélida Piñon foi eleita para ABL em 1989, 

autora de premiadas obras – Foto: Reprodução





FRAGMENTOS DO ROMANCE DE NÉLIDA PIÑON 

ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA





O avô orgulhava-se de ser um camponês que sob sol inclemente, ou na calada da noite, convertia o excremento animal em um fertilizante que produzia riquezas. Ao realçar o significado do sublime gozo que advinha da mulher quando o acolhia nas profundezas de seu corpo, compungia-se de repente, esvanecia-se o dom de alegrar-se.

 

- E por que somos desse jeito, avô?

 

Quis lhe dizer que não confiasse em mim. Eu era um homem ao despertar, e outro ao adormecer.

 

- É assim mesmo, Mateus.

 

E nunca mais se ocupou do assunto.

 

 

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Discretamente consultei o avô. Ele sabia mais do pecado que eu. Era condescendente com o mal, que lhe parecia natural nos humanos. Segundo Vicente, tratava-se de assunto que merecia manter Deus à parte. Mesmo porque a consciência deste Deus não coincidia com a nossa. Dizia, enfático, como podia Ele punir um homem que guardava entre as pernas um membro incendiário, perigoso, em nome do qual se matava? O que saberia este divino da dor de ser humano?

 

- Que Ele não me julgue que não O julgarei também, disse o avô pranteando a morte de uma vizinha que sempre o regalava com uma fatia de pão de ló.

 

 

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- Que saibam os pupilos quem somos. Que outra nação teve o Infante D. Henrique e Camões? Repetia ao término das aulas.

 

Na condição de modesto mentor de aldeia, não hesitou em proteger o seu ideário fracassado. Seu fabulário ainda me acompanha nesta Lisboa vetusta. Herdei sua repetida frase.

 

- Pelo Infante e por Camões, sacrificaria a própria família.

 

Pobre professor que se afogou na espuma do seu sonho.

 

 

..........

 

 

Nunca fui homem de guerrear, propenso a golpear o mundo. Andarilho desde que abandonei a aldeia, cruzei mares, urbes, montes, riachos, cordilheiras, campos onde o trigo reluzia e os animais no pasto mastigavam a erva, e não ergui as mãos para ferir o patrimônio humano. Assimilei cedo certos mandamentos e preparei-me para um dia visitar o Infante D. Henrique em Sagres. Sob o impulso de uma fantasia fornida de carne, a dar andamento ao meu destino.

 

 

..........

 

 

Sou vítima das minhas ilusões. Saí pelo mundo com a intenção de cobrar o que me era devido. Como punição, por onde seguia, levava o nome do desterro.

 

 

..........

 

 

Mesmo em terra firme, parecia-me às vezes dormir no porão do barco em direção ao Oriente, onde estivéramos outrora e nunca deixamos de estar. A vigiar o céu, as ondas, a bússola, os instrumentos a que o Infante dera vida. E lá ia eu a pé, quase sem rumo. A repetir: um dia chegarei a Sagres, e defrontando-me com a efígie do Infante, seu esqueleto, seu fantasma, a tropeçar no tratamento que correspondia a ele, ao papa, aos deuses cristão e gregos. Afinal prometera ao professor Vasco acatar seus devaneios. E por conseguinte seguiria sonhando.

 

 

..........

 

 

- Um dia chegarei a Sagres. E na condição de herdeiro do rei.

 

Ele riu. E forçou-me a crer nos efeitos das viagens, mesmo parcas de recursos, dormindo no chão. Bastava abandonar o lar para iniciar a aventura que nos levaria a conhecer o bem e o mal.

 

- Como faz falta errar.

 

E pensei o que ocorreria ao amanhecer do dia seguinte.

 

 

..........

 

 

Ele mandou que me compusesse, ficasse de pé. E indicou-me a saída.

 

- Se não partir agora, será um homem morto. Jogarei os seus restos aos porcos.

 

As últimas palavras do homem que não era meu desafeto, após ter penetrado no ventre da mulher sob seu comando, soaram-me como uma maldição.

 

No monte de novo, desorientado, indaguei em voz alta se teria dado ao mundo um bastardo. Um filho da puta como eu.

 

 

..........

 

 

Repito com frequência que nasci à margem do Minho, porém, de verdade, distante do seu fascínio. Pouco sei de suas águas. Mantive-me distante das correntes e dos seus segredos. Não fui, pois, ribeirinho, que era uma condição privilegiada, tinham benefícios à porta da casa. E vou morrer não sei onde, que o destino aponte minha vala. Talvez em Lisboa, à qual cheguei sem recursos, também sem sonhos. Só tenho em vista um lugar de Portugal, que responde pelo nome de Sagres.

 

 

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A história da minha família resumia-se à certeza de termos sido pobres, e não nos fora dado conhecer as regalias do mundo. Só nos irmanávamos com os iguais, que sofriam as mesmas penas.

 

 

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Um dia chegarei a Sagres e conhecerei o Atlântico, dizia em voz soturna. Repetia, para acreditar. E aos poucos despedia-me de Lisboa. O adeus final seria diante do Tejo, que me falava, sabia consolar-me. À sua vista repassava as paisagens que esbocei da cidade onde fui infeliz. Foram locais que acentuaram o apetite voraz pelo corpo alheio, uma carência nunca atendida.

 

 

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Minha forma era humana, mas o espírito assemelhava-se às vezes a um barco prestes a afundar nas cercanias de Sagres, um destino almejado, quando ali aportasse. Diante das ondas encapeladas, aguardaria o chamado do mar.

 

 

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Os seres que conheci, na aldeia e em Lisboa, e deixados para trás, relegavam-me ao limbo, onde merecia estar. Previam-me um futuro incerto, de quem ergueria um lar às custas do legado do avô. E avançaria pelos anos afora conformado com a ruína do coração e da casa. Uma decrepitude lastimável.

 

 

.........

 

 

À noite, no quarto, o sexo agitava-se autônomo. A memória do mundo, mesmo não sendo minha, bradava por existir, que não a asfixiasse. Interferia em mim mesmo sem razão de ser. E eu cedia à tentação que me envenenava.

 

 

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Os dias avançavam e seguia sendo estrangeiro em Sagres. Onde estivesse persistiria este estranhamento, a dor que me expulsava da terra. A nenhuma eu reivindicava como pátria. Onde, pois, alojar meu sangue se a vida não me queria?

 

 

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Não sou o único vivente a aguardar o epílogo, como se diz do término de um livro. Iguais a mim, também os reis enganam-se com a morte, revestindo-se de todas as pompas.

 

 

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Lisboa é onde estou. Não sou desta urbe, procedo da circunscrição do Minho, que apaguei do meu mapa. Passaram-se tantos anos desde que lhes dei adeus. Não sei avaliar o saldo a meu favor. O que perdi a cada ano vencido. Foram décadas a me punirem sem trégua, alívio ou brechas. A própria língua ensejou-me a exagerar a fim de definir meu estado. Esta mesma língua lusa não me redimiu por ter amado Leocádia.

 

 

..........

 

 

- Seguiremos juntos. Mateus. Até o fim.

 

E ambos imergimos no silêncio que só romperíamos na manhã seguinte, ainda em Lisboa. Eu tinha esperança de ainda viver algum tempo. Amélia aliviava a pobreza.

 

A vista do Tejo que tenho do alto é de todos. A paisagem íntima de Amélia é minha. 






 

DO MINHO AO ATLÂNTICO: NÉLIDA PIÑON E A ESPERANÇA EM SAGRES DO MINHO AO ATLÂNTICO: NÉLIDA PIÑON E A ESPERANÇA EM SAGRES Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:06 Rating: 5

3 comentários

  1. o ensaio é a porta de entrada
    para beber a fonte do livro, mas nao limita- o , ao contrario, é o início da caminhada ubiversal do enredo

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  2. Gostei muito do livro. Vale a pena ler e reler.

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