TransWinter

A CURTA E FELIZ VIDA DO POETA FRANÇA

 

Por Urariano Mota*

Publicado por DCP em 21/02/2021








Poeta França I Foto: Reprodução/Google






Valdemilton Alfredo de França, o poeta França, nasceu no ano de 1955, no Engenho Pirapama, Cabo de Santo Agostinho. 

 

Foi, é um dos poetas mais rebeldes e subversivos da poesia em Pernambuco. Ele enganava a quem o via sem os seus poemas. Mas a fala mansa, o rosto pacífico e o sorriso tranquilo mudavam quando escrevia, falava e cantava uma poesia feroz e fina com a ira dos justos. Sua obra completa, ou melhor, a obra que ele não pôde completar como a desejava, está reunida em Poeminflamado

 

Escrevi uma vez sobre ele:

 

França é um poeta assim:

 

"Vamos continuar comendo porcarias

Fodendo as marias, bebendo excreções

Fazendo mais josés que nos puxarão os pés"

 

Ele era um homem alto, negro e magro. Um homem que falava manso e baixo. Que ria, que sorria com dentes brancos em queixo descarnado. Um homem que se embriagava e não tropeçava em público. Melhor, tropeçava também, mas, malandro, fazia do tropeço um gingado de capoeira, como se desse um novo e surpreendente salto de acrobata. Um homem de gosto tão artístico que desenhava as próprias roupas. Que poderia ser autor de grife. Mas não, que preferiu desenhar quando interpretava os seus petardos. As suas bombas incendiárias de inteligência:

 

"Pensar dói, pensar dói, pensar dói...".

 

Deixou a memória da militância poética nos livros A cor da exclusão, de 1998,  Cafuné, de 2003 e Poeminflamado, compilação de toda sua obra, lançada postumamente em 2012. França liderou, por sete anos, o movimento Eu, Poeta Errante, recital aberto e itinerante que acontecia todas as quintas-feiras, de agosto de 2000 até setembro de 2007, pouco antes de seu falecimento.

 

Em 2000, França começou o primeiro recital da série, em Olinda. Foram mais de trezentos recitais em dezenas de locais diferentes em Pernambuco e em outros pontos pelo Brasil. O poeta, que já militava pela poesia corporalmente transmitida e socialmente brincada, passou a ter seu compromisso de fé, todas as quintas-feiras, à meia-noite, de encontrar-se com pessoas para recitar e ouvir poemas. Abrangendo desde encontros onde havia apenas ele e poucos participantes, até récitas-festas com dezenas de pessoas. O poeta faleceu aos 52 anos em 16 de outubro de 2007, de leucemia. Viveu, amou e morou em Olinda, nos piores e melhores momentos da sua vida.

 

No seu enterro, enquanto outros choravam, o poeta Valmir Jordão se acercou do caixão e, de frente para o poeta negro, fez um recital. Somente para França. Em voz alta, como se conversasse na melhor língua que sabe fazer, poesia. Um monólogo cuja força era um diálogo, possível, impossível, real e imaginário. Ali o poeta falou para França da radical opção de suas vidas, na certeza de que razões de viver também são razões de morrer.





*Urariano Mota é jornalista e autor dos romances Soledad no Recife, O filho Renegado de Deus e A mais longa duração da juventude. É colaborador do site literário DCP. 








CINCO POEMAS DO POETA FRANÇA SELECIONADOS

POR URARIANO MOTA







CONSTATAÇÃO

 

Onde foi que eu perdi

A minha naturalidade?

Que gesto ou palavra aprisionou

A minha espontaneidade?

Ou foi a mão do meu pai, fazendo nãos,

Antecipando-se ao meu ato,

Precipitando-se ao meu gesto...

Ou será porque sou negro, quero dizer,

Todos os negros são assim?

Por quê este olhar desconfiado

Meu, do meu pai, do meu avô

De quem não sabe se tem permissão

Para rir, chorar, gritar, gemer, gozar?

Permissão pra reclamar, se irritar, se exceder;

Permissão para mijar, permissão para ser,

Para ter, para estar?

Ainda chamam de arrogante

O negro que não tem o olhar subserviente: Negro Besta.

Eu passei a minha vida inteira pedindo desculpas:

“Desculpe-me por estar aqui... por ter que me ver.”

Sr. Analista: Em que momento da minha vida

Me tornaram assim? A que tipo de lavagem me submeteram?

Quanto tenho que pagar para ter de volta minha cidadania?

Estudar pra ser Doutor?

Pergunte ao Dr. Negro o que ele teve de fazer pra ser Doutor

Ser jogador de Futebol?

Até Romário tem os olhos baixos, ou melhor,

Pergunte a ele se ele é negro.

Não, não adianta dizer que a escravidão acabou.

Eles ainda são senhores de todos os nossos passos

Antes, da nossa vida, nosso corpo;

Hoje das nossas mentes e dos nossos destinos.

Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei.

Desde que nos diga que é rico

E a eles que é branco!

Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi

O Zumba que hoje dorme em cada um de nós.

Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par

Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa:

OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR

 

 

LÁ VEM ELA

 

- lá vem ela!

- ela quem, home?

- a fome!

 

A fome vem descendo a Ladeira da Misericórdia

sem misericórdia nenhuma

a fome come 

e alimenta outras carências

a fome come

e cada vez mais elimina as diferenças

entre seres humanos e animais

 

e o pobre homem

- de tão pobre, de tão humilde,

impertinente –

encontra um santo padre descendo a ladeira e diz:

 

- valei-me, meu padim, que eu já não acredito mais em Deus

nem nessa ave-maria que eu ouvi cantar.

porque não há mais em quem acreditar

do que o feijão carroz do meu dia a dia,

já que fósforos e sal eu guardo na rodia

e gravetos eu faço com o santo e com o altar.

me diga mais uma vez, uma vez só, meu padim:

se o homem é a semelhança de Deus

quais dos que eu conheço que circulam entre nós

que não seja branco e muito rico e bem sorridente?

ou será, meu padim,

será que, por acaso, esse Deus tem parte com o cão?

Por que será que os da minha cor

lavam a latrina dessa multidão?

 

 

EM POEMINFLAMADO DE 2012

 

Ai minha preta, tu me pedes

Para falar sobre os negros

No dia treze de maio e eu choro:

Agora que conheço a história

Desdenho do branco que a fez

 

Ai minha preta tu me pedes

Para falar sobre os negros

No dia vinte de novembro e eu pasmo:

Gritos ecoam na minha mente:

Zumbi morreu! Zumbi morreu em vão!

 

E ainda me pedes minha querida

Para falar sobre os negros

Que estudam na minha escola

E eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora

 

Mais na Igreja do que na Escola

Sem rei, sem terra, distinção ou louvor

Lavando latrinas, lambendo sapatos

No Brasil, os negros estão onde sempre estiveram!

 

Sobre os negros, minha preta

Eu não falo. Ou tu não vês

Toda essa gente explorada

E todo mundo calado?

 

 

ONZE HORAS

 

onze anos de idade,

um botijão de gás

asfixia a criança

que sobe, ligeira, a ladeira

e à força das gravidades

não poderá mais crescer

 

sete horas,

setecentas cabecinhas

dentro do ônibus sagrado

Rezam sete ave-marias

De sete em sete segundos

E à força das gravidades

Não poderão mais subir

 

Meia-noite

Brasil do ano dois mil

Explode em artifícios

Camufla o novo holocausto

Sacrifica ao deus-bezerro

E à força das gravidades

Muito sangue há de correr

 

Sim, nós temos super-heróis

Só não estão na TV

Nem nas áreas de lazer

Em qualquer dificuldade

Em caso de overdose

E à força das gravidades

Chamem o Batmam!











A CURTA E FELIZ VIDA DO POETA FRANÇA A CURTA E FELIZ VIDA DO POETA FRANÇA Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:05 Rating: 5

7 comentários

  1. TIVE A HONRA DE PARTICIPAR DE VÁRIOS RECITAIS COM O ETERNO FRANÇA! UMA FIGURA SEMPRE MUITO ESPIRITUOSA!

    ResponderExcluir
  2. Quanta sensibilidade e consciência encerradas numa pessoa só!
    Saudade!!!

    ResponderExcluir
  3. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/corpoeticidades-dos-saraus-de-poesia-o-movimento-eu-poeta-errante-de-franca-de-olinda/

    Podia pelo menos citar o texto copiado (quinto parágrafo deste texto está idêntico ao do deste link)

    ResponderExcluir

Recent in Recipes

3/Food/post-list