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EVOCAÇÃO DE TERÊZA TENÓRIO (*) (1949-2020)



Por José Rodrigues de Paiva*






Foto: Reprodução




Francisca Terêza Tenório de Albuquerque não é, para mim, apenas um dos nomes exponenciais da “Geração 65” de poetas e prosadores pernambucanos que neste ano [2015] está completando meio século: Terêza foi minha contemporânea no curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Não éramos colegas de turma, porque, mais velho do que ela, eu estava dois ou três anos à sua frente no curso, mas a literatura aproximou-nos e ajudou-nos a construir uma boa amizade. Daquelas que se leva pela vida afora sem nada pedir em troca, sem nada querer um do outro a não ser o bem de cada um. Terêza lia as minhas coisas acabadas de sair da máquina de datilografia, eu lia os seus poemas antes de seguirem para o “crivo” do poeta César Leal, então editor, com Marcus Antônio do Prado, do Suplemento Literário do “Diario de Pernambuco”. Ela e eu, assim como os demais integrantes do grupo de jovens aspirantes à literatura, esperávamos ansiosamente pelo jornal de domingo, que era a festa de vermos se vínhamos ou se vinha algum dos nossos amigos estampado em letra impressa nas páginas de grande tradição literária mantidas pelo “jornal mais antigo em circulação na América Latina”. Éramos todos muito jovens e o sonho era maior do que a realidade.

Quando recebi de Anco Márcio Tenório Vieira o convite para falar sobre Terêza Tenório fiquei contente por se me apresentar a oportunidade de, mais uma vez, escrever sobre a sua poesia. Depois percebi que não seria fácil, porque sempre a pessoa da poeta, ou as lembranças que tenho dela, se presentificavam entre a poesia e o crítico e a tentação de evocar a pessoa era mais forte do que a disciplina e a objetividade de estudar a complexa e por vezes estranha poética de Terêza. Mas a razão dizia-me (e diz-me) que na Academia as obras interessam mais do que os seus autores e eu viria aqui falar para universitários que já aprenderam que o biografismo é secundário quando se trata de analisar obras literárias. Entretanto, a presença de Terêza era muito forte para que eu a pudesse abstrair. Ela está em cada um dos seus poemas e às vezes fala mais alto e mais forte do que a voz dos seus versos. A alegria esfuziante de Terêza, ou a sua melancolia disfarçada em riso é uma lembrança persistente que não se arreda do poema. A sua beleza também. Ela era chamada por alguns dos nossos de “a musa da Geração 65”. Terêza foi uma jovem mulher que sabia cultivar não só os dotes da inteligência, mas também os caprichos da elegância e da desenvoltura que eram suas e com as quais se apresentava sabendo valorizar os perfis de corpo e rosto e de brincar com um sorriso constante, às vezes irônico, às vezes zombeteiro, talvez por estratégia de defesa contra algum imperceptível traço de timidez. Tinha, sem dúvida, alguma coisa de esfíngico e de misterioso que muito bem soube passar para a sua poesia. Na vida prática, oscilou sempre entre os fortes apelos da criação poética e a aprendizagem feita em códigos e obras doutrinárias da ciência jurídica. Terminado o curso, Terêza enveredou pela profissão de advogada, integrando o departamento jurídico da Celpe (Companhia de Eletricidade de Pernambuco), mas nunca personificou a sisudez que frequentemente caracteriza os profissionais do direito. Pelo contrário: continuou manifestando os traços desenvoltos da sua personalidade marcada por expansões de alegria, sempre sorrindo, sempre demonstrando entusiasmo, sempre ironizando finamente a vida e as suas circunstâncias, e, sobretudo, sempre escrevendo a sua poesia, participando de recitais e de lançamentos de livros, sempre performática como era do seu espírito.

A certa altura da vida Terêza Tenório decidiu fazer aqui, na UFPE, o Mestrado em Teoria da Literatura. Não o concluiu. Faltou-lhe talvez, diante dos apelos da criação poética, a disciplina que teve de sobra para o exercício do direito sabendo aí separar a vida profissional da vida artística. Penso que, aluna do Mestrado em Teoria, não conseguiu harmonizar o universo teórico da literatura com a sua inclinação profunda para a criação literária. Terêza talvez tenha levado demasiadamente a sério uma frase de Goethe que César Leal repetia constantemente nas suas aulas e nas suas conversas. A frase pertence a um diálogo entre Mefistófeles e Fausto, é dita pelo primeiro ao segundo e afirma o seguinte: “Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde a árvore dourada da Vida.” É claro que a “teoria”, aqui, nada tem a ver com a Teoria da Literatura, ou César Leal jamais pronunciaria essa frase. A “teoria” seria o pensar, o teorizar, o produzir exigente de um recolhimento que se opusesse ao viver.

Os estudiosos de Goethe dizem que a frase representa um traço da filosofia de vida do grande romântico alemão. Não penso que Terêza a tomasse ao pé da letra e que ela a tenha incompatibilizado com a Teoria da Literatura, o que a incompatibilizou foi, provavelmente, o choque entre a “teoria” e a “práxis” poética. E esse “choque” efetivamente existe em muitos casos (e aí me incluo) entre os que, dedicando-se à poesia ou à ficção, resolvem enveredar também pelos estudos da Teoria Literária. Nos casos mais sensíveis, a aprendizagem da Teoria parece inibir o criador literário. Sobre isto atrevo-me a dar um depoimento pessoal: na minha juventude desejei ser escritor, interessando-me a poesia, o conto e a crítica literária; quando ingressei no Mestrado, em 1977, passei a não ter muito tempo para a poesia e o conto porque todo ele era destinado às leituras específicas e à produção dos trabalhos acadêmicos (além de ter de prover a sobrevivência familiar, claro); quando, em 1981, concluí e defendi a dissertação sobre Vergílio Ferreira senti-me esvaziado e muito tempo se passou sem que eu pudesse voltar à poesia ou ao conto. Hoje, quando olho para a relação das coisas que escrevi, percebo que o ensaio de crítica venceu os poemas e os contos. Terêza poderá ter antevisto algo parecido e resolveu afastar-se da Teoria Literária (que não tem nada de cinzento) para privilegiar a sua poesia. Optou pela árvore dourada da sua poética enquanto o verdor da vida lhe permitiu. Infelizmente, esse verdor murchou precocemente (transformou-se em cinza) calando a voz e a escrita da grande poeta que ela era. Continua a sê-lo na obra que produziu, mas poderia ter realizado muito mais.

A última vez que vi Terêza Tenório foi no ano 2000, no hall do Centro de Artes e Comunicação, onde, juntamente, com vários professores da Casa e de outras universidades brasileiras e portuguesas eu participava da abertura de uma exposição iconográfica sobre Eça de Queirós, de quem, então, se celebrava os 100 anos da morte. A exposição chamava-se “Eça de Queirós: marcos biográficos e literários (1845-1900)” e integrava as atividades do Colóquio Internacional denominado “Eça entre milênios: pontos de olhar”. Durante a alocução de abertura da exposição, feita pela professora Isabel Pires de Lima, Terêza surgiu no meio de nós, visivelmente emocionada, dizendo a mim e a Lucila Nogueira, que vinha despedir-se, que estava indo a São Paulo levada por um problema de saúde. Não deu maiores explicações. Abraçou-nos chorando, a Lucila e a mim, disse que nos amava muito e saiu, deixando-nos absolutamente perplexos. Desde esse dia nunca mais a vi. Soube muito depois que tipo de terrível doença a maltratava de forma cruel. Terêza está viva, mas é como se já não estivesse porque não pode mais estar entre nós.



Foto: Reprodução



O poeta e cronista José Mário Rodrigues publicou recentemente na página “Opinião” do Jornal do Commercio, um comovente artigo em homenagem a Terêza. Intitulou-o “Chama que se esvai” e escreveu assim o primeiro parágrafo:

"Ela ainda está viva, melhor dizendo, gravemente viva. Naquele estágio de quase morta. Visitá-la, não tenho coragem. Melhor ficar com a imagem da mulher bonita, excelente poeta, comunicativa e dona de um belo sorriso. Há mais de dez anos que adoeceu. Tanto tempo fora de cena, alguns pensaram que ela estava em outra esfera: a do esquecimento, que Manuel Bandeira definiu muito bem 'morrer mais completamente ainda / sem deixar sequer esse nome'.”

O cronista dá prosseguimento ao seu texto revelando a identidade da homenageada:

"Integrante da Geração 65, estreou com o livro Parábola. Seus primeiros poemas foram publicados no JC e Diario. Estou me referindo a Terêza Tenório. Publicou também no México, na Itália e até na Coréia do Sul. Segundo o poeta e crítico César Leal, a poesia de Terêza 'se caracteriza por uma fuga ao lugar comum, aos velhos processos expressivos, sem, contudo, chegar ao extremismo das vanguardas mais sofisticadas'. Elegeu o amor como força maior, 'amor candelabro aceso dentro da sombra'. E viu que 'É preciso saber amar o silêncio / para não se perder do Senhor do Tempo'.”

Terêza seria artista de qualquer maneira. A arte era o caminho da sua vocação. Antes da poesia tentou a pintura e o desenho. Nunca fez (que eu saiba) nenhuma exposição, mas eu cheguei a ver alguns trabalhos seus. Depois encontrou a literatura e particularmente a poesia, mas incursionou também pelo conto. Creio que não chegou a publicar nenhum, mas eu li alguns dos seus textos em prosa nos quais ela representava ficcionalmente um estranho mundo, como ocorre, também, em vários dos seus poemas.

Vão sendo horas de concluir esta evocação da pessoa de Francisca Terêza Tenório de Albuquerque e dizer alguma coisa sobre a sua poética, para melhor tentar cumprir, academicamente, a tarefa alegre e triste que me coube. Só ainda uma última coisa de ordem pessoal a respeito do seu prenome composto: certa vez, conversando comigo na Universidade, Terêza disse-me que estava procurando, no seu nome, qual a composição ideal para assinar os seus poemas. Como se chama Francisca Terêza, eu disse-lhe em tom zombeteiro que poderia ser “Chica Têca”. Ela poderia ter ficado aborrecida com a brincadeira, mas, sorriu o sorriso de sempre e no dia seguinte trouxe-me um poema e um desenho assinados: “Chica Têca”. Era assim a Terêza que eu conheci. 

E por fim, José Mário Rodrigues encerra a sua crônica com uma pequena antologia de versos de Terêza Tenório:

Aproveito o espaço para homenagear essa bela poetisa que aguça a minha sensibilidade e a de quem conhece os seus livros: "O círculo e a pirâmide", "Mandala", "Noturno selvagem", "Poemaceso" e "Corpo da terra". Eis um caleidoscópio de alguns dos seus versos: “Não morrerei de amor enquanto exista / todo o mar que se estende até a lua.” “O poema é um rio / que me flui através do corpo.” “O meu amor inundará o tempo / e sobreviverá a Tróia, aos deuses, / ao meu nome e a teu nome.” “O silêncio nos envolve como labirinto.” “Os vivos carpem o Morto / em ritmo lento / Entoam cantos rituais /e mordem o vento.” “Deixei muitos sonhos inacabados.” “Muito longe, um sino dobra tristeza / eu me pergunto se há alguém alegre no mundo.” “Deixei-me ao lado do alto muro.” 

Terêza seria artista de qualquer maneira. A arte era o caminho da sua vocação. Antes da poesia tentou a pintura e o desenho. Nunca fez (que eu saiba) nenhuma exposição, mas eu cheguei a ver alguns trabalhos seus. Depois encontrou a literatura e particularmente a poesia, mas incursionou também pelo conto. Creio que não chegou a publicar nenhum, mas eu li alguns dos seus textos em prosa nos quais ela representava ficcionalmente um estranho mundo, como ocorre, também, em vários dos seus poemas.

Vão sendo horas de concluir esta evocação da pessoa de Francisca Terêza Tenório de Albuquerque e dizer alguma coisa sobre a sua poética, para melhor tentar cumprir, academicamente, a tarefa alegre e triste que me coube. Só ainda uma última coisa de ordem pessoal a respeito do seu prenome composto: certa vez, conversando comigo na Universidade, Terêza disse-me que estava procurando, no seu nome, qual a composição ideal para assinar os seus poemas. Como se chama Francisca Terêza, eu disse-lhe em tom zombeteiro que poderia ser “Chica Têca”. Ela poderia ter ficado aborrecida com a brincadeira, mas, sorriu o sorriso de sempre e no dia seguinte trouxe-me um poema e um desenho assinados: “Chica Têca”. Era assim a Terêza que eu conheci. 

Quanto ao que dizer sobre a sua poesia, começo por me socorrer de uma citação de César Leal feita por José Mário Rodrigues na sua crônica “Chama que se esvai”. Diz César, citado por José Mário: a poesia de Terêza “se caracteriza por uma fuga ao lugar comum, aos velhos processos expressivos, sem, contudo, chegar ao extremismo das vanguardas mais sofisticadas”. Que “lugar comum” e que “velhos processos expressivos” seriam esses a que César Leal se referia? Um dos lugares comuns a uma grande parte dos integrantes da Geração 65 nas primeiras horas era a eleição de João Cabral de Melo Neto como modelo e fonte de inspiração. Poucos escaparam à grande e condicionadora força que a poesia cabralina exerceu sobre os poetas iniciantes dos anos 60 e 70. Terêza escapou. Alguns outros poetas também, preferindo uma poética da delicadeza, a suavidade do lirismo à maneira de Carlos Pena Filho ou de Mauro Mota à “poesia a contrapelo” da Educação pela pedra ou ao gume afiado da “faca só lâmina”, ou da Escola das facas ou ainda à poética de “Catar feijão” ou à secura de Agrestes, que é um livro já dos anos 80. Quanto aos “velhos processos expressivos” seriam, provavelmente, no pensamento de César Leal, os traços tardios dos neo-romantismos, neo-parnasianismos ou neo-simbolismos ainda encontráveis nos poetas da geração de 1945.

Terêza não quis esses modelos para o seu primeiro livro, Parábola, publicado em 1970. E também não para os que se seguiriam. Nem a poesia áspera de Cabral, nem os “velhos processos expressivos”. Buscou, desde as primeiras horas, trilhar um caminho diferenciado daqueles que eram os prediletos dos seus companheiros de geração. Isso nota-se desde os títulos das suas coletâneas de poemas: Parábola (1970), O círculo e a pirâmide (1976), Mandala (1980), Noturno selvagem (1981), Corpo da terra (1994) e Fábula do abismo (1999). São todos, principalmente os três primeiros e o último, sugestivos da representação de um universo de mistérios. Quando passamos aos títulos de alguns poemas, a sugestão acentua-se: “Alfa-Centauro”, “Horóscopo”, “Capricórnio”, “Parábola”, “Muito além do planeta azul”, “Teorema”... Todos do livro Parábola. Se passarmos ao segundo livro – O círculo e a pirâmide – continuamos encontrando essa carga densa de misteriosos símbolos: “A(s) sombra(s)”, “A faca sobre a água”, “Ritual”, “O triângulo das velas”, “Sânscrito”, “Os lêmures”, “Visões do Apocalipse”. Assim também nos demais livros e talvez principalmente em Mandala. Mas eu não vim aqui fazer um inventário dos títulos de Terêza, e passo agora dos títulos aos textos.

O primeiro livro de qualquer escritor, seja poeta ou ficcionista, é sempre o da procura de um caminho, de uma expressão identitária ou estética, de uma escrita que seja ou venha a ser pessoal e reveladora de um universo de coisas, de uma certa maneira de ver, sentir e representar o mundo, de um certo modo de ser e de estar na vida. Quando se lê o primeiro livro de Terêza Tenório logo se percebe que ela inicia ali esse caminho da busca. Nota-se que ela não pretende adotar os modelos estratificados escolhidos pelos seus contemporâneos e conterrâneos, os que viriam a ser seus companheiros de geração. Não é indiferente ao principal metro poético então adotado, a redondilha maior, mas prefere o verso mais breve, espartilhado em quatro sílabas, de enorme contensão. Não quer a prisão das formas fixas, mas não será indiferente ao soneto. Não pretende a poesia social, muito em moda, na época, e demonstra o seu gosto por algo que se percebe que reside, em parte, numa tradição de fazer “literário” algo lateral (para não dizer marginal) e no mundo das ciências e das tecnologias que ganharam um grande impulso justamente nos anos de 1960. Refiro-me aos elementos da ficção científica. Com eles Terêza começou a construir os mistérios da sua poética.

A poetisa pertence a uma geração que leu, nos romances de Júlio Verne, as primeiras incursões pela ficção científica e que, nas tardes de cinema, ainda viu os velhos seriados do herói das viagens espaciais chamado Flash Gordon. A mesma geração assistiria, em 1968, à superprodução 2001 uma odisséia no espaço e, em 1969, nos aparelhos de televisão, veria a chegada do homem à lua, e mais tarde (já maduros, os da geração), outra vez no cinema, acompanharia as extraordinárias aventuras de Luke Skywalquer, protagonista da série Guerra nas estrelas inspirado em Flash Gordon.

É evidente que esse mundo que oscilava entre a ficção e a realidade dos avanços científico-tecnológicos interessou muito mais a Terêza do que as paisagens de pedras e cactos, a fome e outras misérias e as injustiças sociais praticadas pelos poderosos contra os sempre humilhados e ofendidos. Ela não tinha nenhum interesse pela poesia política, mas sentia-se fascinada pelos mistérios do infinito universo. Daí a escrita de poemas como “Alfa-Centauro”

A paisagem acrílica
de Alfa-Centauro
evolui metálica
ante nossos olhos.

Antiformas bélicas
de astronaves mudas
(a mudez da pedra
gritante de um Buda).

Antiformas líricas
de astronaves puras
(a pureza fria
de alvas estruturas).

Antiformas térmicas
de astronaves límpidas
(contra um céu de chumbo
destacam-se nítidas).

Na planície densa
de gases acesos
de completo caos
surge um ser coeso.

É um ser sem alma
de face mecânica
(produto arrancado
à energia atômica).

Manoplas de aço
inoxidável.
A cabeça e o tórax
eletronizados.

Mil computadores
De urânio e cobalto
testam a resistência
do ser automático

e monstros em série
(pois tal ser mecânico
é, em verdade, um monstro)
brotam no outono.

Outono sem árvores
ou folhas caídas
ao sopro do vento
pelas avenidas.

Outono sem chuvas,
sem sol, sem ocaso,
sem fruta madura
com sabor de acaso.

Outono só fim
túmulo do verde
das cores da vida
em todo planeta.

E das astronaves
os seres sintéticos
alçam voo clássico
com destino bélico

indo, céu adentro,
para a Terra – lívida,
descarnada, trêmula,
semi-apocalíptica.

A temática espacial seria recorrente neste primeiro livro de Terêza como atestam os poemas “Nave”, “Parábola” e “Muito além do planeta azul”. Do primeiro destes poemas, estruturado em versos de redondilha maior e na tradicional estrofe de quatro versos, transcrevo fragmentos do seu início e do final:

Buscando o fim do Universo
partiu a nau supersônica
forte nave de metal
movida a energia atômica.

Grande nave inconformada
da época espacial
em mil detalhes testada
partiu, e nenhum sinal

deixou nos confins do mundo
da procura entre as estrelas,
na Via Láctea, planetas,
civilizações inteiras.

Nebulosas e asteróides
com estranhas formas de vida,
imensos desertos áridos,
aves de asas partidas.

[...].

Mil mundos de fogo líquido
e rubra lava fervente
altíssimas atmosferas
planetas incandescentes.

A mais longínqua galáxia
de anos-luz de distância
que jamais serão contados
não interrompeu a andança

da forte nau supersônica
de corpo esbelto e maciço
solidamente firmada
em seu rumo no infinito.

Mas nem tudo em Parábola pertence ao universo da ficção científica mesclada com a realidade científico-tecnológica do século XX. Também a existencial angústia, que na vida e na morte se manifesta, está presente na estreia poética de Terêza. E também nem tudo, do ponto de vista da estrutura, se resume ao verso curto de quatro sílabas ou à redondilha maior. A poeta demonstra, desde os instantes iniciais do seu trabalho poético, que é capaz de lidar com o verso longo e de dominar formas fixas, como o soneto e disso oferece evidentes provas em “Antropofagia”, “Face amada”, “Soneto” (dedicado à memória de Jorge de Lima) e no belo e doloroso “Tem a lucidez do que é vivo”, este soneto elegíaco que é, sem dúvida um dos melhores poemas do livro e já um dos mais expressivos produzidos por Terêza Tenório:

Dorme, meigo irmão, dentro da sombra
neutra, indivisível, silenciosa e úmida
do pranto que choramos
quando, ao longo de tua última hora

seguiste em teu rumo irreversível
sem florestas, sóis, luzes ou enganos.
Somente sombras. Tua espessa alma
ora experimenta sono e calma

o que a nós tristemente é negado
assim como os sinos do teu riso
límpido. Teu rosto no passado

tem a lucidez do que é vivo
e tua rigidez de morto exato
eu a sinto ainda no meu tato.

É sobretudo com os quatro sonetos incluídos em Parábola que Terêza amplia o leque temático do seu primeiro livro direcionando-o para outras dimensões. Como, por exemplo, a morte e o amor que viriam a ser tão fortes elementos na sua lírica. A poeta caminharia, um pouco mais tarde, para, mais do que uma recorrência, uma espécie de obsessão ou de desesperada fixação na temática do amor, mas de um amor amargurado, sem esperança, que não encontra eco nem resposta no grito com que tenta alcançar o ser amado. Um amor que não é sentido nem ouvido, que não tem interlocutor, e que por isso se esvai em drama, quase em tragédia.

Se algumas das antevisões de Júlio Verne e de outros ficcionistas e cineastas, de Flash Gordon a Guerra nas estrelas, vieram a pertencer ao domínio do mito, Terêza buscaria, além destes, os de outras mitologias, desde as clássicas (as greco-latinas), às orientais, germânicas, eslavas, nórdicas, escandinavas. Terêza encantou-se com esse mundo: de Krishna, da Cabala, da Mandala, da Torah, do Zohar, da literatura medieval – com os seus cavaleiros e a busca do Graal –, do misticismo, do esoterismo, da alquimia, enfim, de tudo o que para a nossa cultura é principalmente mistério. Não lhe eram indiferentes as lendas dos golens, de Loreley, de Melusina, de Teseu, de Anfion, de Orfeu, de Ulisses, de Lilith, do doutor Fausto, de Galahad, dos teutões e dos celtas, com os seus druidas, assim como não lhe era indiferente a paisagem de Carnac e seus menires ou os símbolos do pássaro roca e da flor de lótus. 



Capa do livro Poesia reunida, Cepe, 2018


Com estes elementos Terêza Tenório construiria uma poesia única e muito pessoal quando comparada à que era produzida pelos seus companheiros de geração. Das naves espaciais dos seus primeiros poemas passaria a uma poesia cósmica introduzida entre nós por César Leal com o seu magnífico poema O triunfo das águas, seguido, mais tarde, por Tambor cósmico. César iluminaria a geração com os seus livros de poemas e os seus lúcidos ensaios de crítica de poesia. Vários dos então jovens poetas seguiriam os seus passos. Alguns, mais tarde, diriam que não, negando-o por três ou mais vezes, como na negativa bíblica de Pedro a Jesus, negando a César o que era de César. Terêza assumiu claramente e sem disfarces os ensinamentos recebidos do mentor intelectual da Geração 65. César Leal ensinou a geração a ler os grandes poetas e os grandes ensaístas. De Dante a Jorge de Lima, de Samuel Johnson a Eliot, Pound ou Octavio Paz. Se observarmos as epígrafes selecionadas por Terêza Tenório para a abertura dos seus livros vamos encontrar nelas vestígios dessa orientação estética: estão lá o próprio César Leal, Walt Withman, Rainer Maria Rilke, Jorge de Lima, Platão, Jorge Luis Borges, o Zohar, Krishna... Eram essas as leituras de Terêza, certamente nem todas sugeridas por César, mas algumas sim.

É hora de encerrar esta evocação pessoal e literária de TerêzaTenório. Infelizmente ela não pode estar entre nós. Ela está “gravemente viva. Naquele estágio de quase morta”, como a seu respeito escreveu o poeta José Mário Rodrigues. Mas não a sua poesia, que está e estará sempre saudavelmente viva, naquele estágio de brilho que só é dado aos mais puros cristais, às pedras preciosas, aos astros e às estrelas que, do infinito do universo iluminam a constelação da nossa poesia. Quero terminar esta minha homenagem a Terêza lendo um dos seus poemas de amor, que viria a ser o maior dos seus temas e escolhi o poema XII, um soneto, de Noturno selvagem:

Não tenho Amor em minhas mãos o tempo.
Tampouco sou mais bela e afortunada.
Meu corpo dispersei pelas tabernas
e ao te ver a meus pés, como lamento.

Tu me falas de vida e sentimento
e eu te pergunto: Amor, por que tão tarde?
A velhice que habita minha carne
ardeu-me o coração e o pensamento

já não te flui, Amor, como seria
se desde há longo tempo me chegasses.
O acaso fez em séculos os dias.

Por isso, Amor, evita que te abrace.
Sou anjo decaído e solitário.
Tenho o signo da morte sobre a face.


*José Rodrigues de Paiva é escritor, ensaísta e poeta


____

(*) Texto lido em sessão do “II Encontro de Literatura em Pernambuco”, realizado em 20 e 21 de maio de 2015 no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, sob a coordenação do professor Anco Márcio Tenório Vieira e incluído no meu livro “Geração 65: Cinquenta Anos” (2016).
Olinda, maio de 2015









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Um comentário

  1. Belíssimo texto sobre a Terêza Tenório e a sua poesia, José Rodrigues...Mais que evocação, uma oração de profundo e analítico teor - o que sem dúvida ajudará a manter bem viva a memória poética desta grande poeta da Geração 65. Parabéns mais uma vez, meu amigo!

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