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A AURORA DESMORONADA



por Diego Mendes Sousa*











Os poemas contidos em Entrevozes do tempo (Editora Penalux, 2020), de João Carlos de Carvalho, foram lapidados por quase vinte anos, em longa gestação, desencadeada logo após a publicação de “Poemas sobreviventes”, em 2002.

Escritor de vocação larga, teórico da literatura, romancista, contista e ensaísta, João Carlos de Carvalho movimenta uma obra poética articulada em cinco peças que arquitetam a construção e a perdição dos signos humanísticos.

Estético e conceitual, Entrevozes do tempo modula-se interrompido e ressuscitado pela criação de filósofos e de escritores de galardão universal, entre poetas e ficcionistas, que municiaram a sensibilidade do poeta carioca João Carlos de Carvalho, também de alma acreana, vivente nos rincões da floresta, onde reside há trinta anos, com o olhar e com a ambiência de um balzaquiano amazônida.

Sua poesia é uma faca que perfura o tempo. Muitos dos seus poemas são frasais, a gotejar lentamente o sangue das palavras em esmeradas centelhas de significados e de obsessões: A poesia não vive sem o esgotamento; ostra a mostrar como não ver-se, Narciso ao contrário.

João Carlos de Carvalho detém o conhecimento da artesania literária, perceptível em seu estilo de reacender épocas preservadas pelo saber cultural. Comovem-me, em seu itinerário de dicções, os versos que enlaçam a terra, a casa e a memória, a sacralizar o tempo: este olhar trazido de longe não é o lar?; e no varal, pingando os velhos panos, o que se reconhece está dentro ou fora de ti, mas o que se desconhece ainda é o essencial.

Os seus gestos e o seu percurso almejam o futuro; seu discurso prevê uma aurora arruinada. É recorrente em seus poemas a projeção do amanhã, escoltada pelo sentimento amadurecido das maldições e das deformações experimentadas no afã da existência e da evolução da humanidade.

João Carlos de Carvalho observa de fora para dentro e seu verbo poético é analítico e lacônico, com a plenitude do seu raciocínio cirúrgico e crítico. Destaca o poeta que o nosso destino é o de administrar ressentimentos, bem como declara que o silêncio me ensinou a me mover entre desconhecimentos.

Entrevozes do tempo está repleto de postulados impressionáveis e dotado dos símbolos reflexivos fundamentais ao desnudamento da poesia. Diz João Carlos de Carvalho que a poesia não vive sem o esgotamento e enfatiza que o mínimo debruçar para dentro é todo o risco.

Os aforismas alheios contaminam as sentenças de João Carlos de Carvalho e reluzem como sentinelas de um grande leitor. Entrevozes do tempo é uma recomposição do desafogo de uma espúria insana e ao mesmo tempo uma caça pelo mistério de Deus, em seu cosmo de luz.

O notável poema Batismo de alma, que evidencia o seu grito interior, sintetiza o fracasso da memória ante a estupidez do mundo, de um artista sobrevivente do caos e das imprecações do entretempo vazio e embebido de dor. João Carlos de Carvalho registra o fastígio da sua maestria em evidenciar tormentos e sofrimentos nestes versos: A minha terra é uma doença demarcável, sei até onde ela me faz mal. Há uma memória que não se vê, não se toca, não se lembra; é a essencial.

A beleza dos seus poemas está no escárnio do humano. Dramática e burlesca, a delicadeza da sua alma confronta-se com o abismo do pós-tudo e com a decadência do destino adâmico, que sobrevive de um horizonte incurável, obscuro e falível, onde deuses e poetas cospem no mesmo prato.






*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e curador da obra Entrevozes do tempo (Editora Penalux, 2020) de João Carlos de Carvalho. O livro comemora 20 anos de atividade literária do seu autor.


Disponível à venda em: 









POEMAS DE JOÃO CARLOS DE CARVALHO
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA






Os mortos do século

Os vivos carregam os últimos segredos dos mortos:
tudo se consumiu em cada canto do quintal,
ah, e qual quintal?
E o cheiro das surpresas,
quando ainda não eram surpresas,
e no varal, pingando os velhos panos,
o que se reconhece está dentro ou fora de ti,
                       mas o que se desconhece ainda é o essencial.


Batismo de alma

A minha terra é uma doença demarcável,
sei até onde ela me faz mal.
Há uma memória que não se vê,
                                         não se toca,
                                                     não se lembra;
é a essencial.


Pastores do amanhã

Poetas sabem mais que a sua verdade,
convocam simulacros de almas surdas.

Os deuses desconfiam das gentilezas,
mas exigem proveitos de outras eras.

Os poetas singram ósculos e sonhos,
inventam as palavras repetindo-as.

Deuses e poetas cospem no mesmo prato,
são gêmeos que se louvam no azar,

postulam o abandono no redil,
confessam o exagero em um mínimo!


O danado de outras terras

Posso não ver, mas é porque o objeto existe,
e, o que não posso ser, pesa com sua sombra,
a torrente profunda a arriscar outra língua,
aquilo que não posso ter fora da ausência.

Enterro em mim a quase paisagem vivida,
suprema correção disso que não possuo,
a voragem das pústulas que me corrigem,
tenho a surpresa das ruas sempre repetida.

Mas eis que o labirinto se encontra sem voz,
o espelho alterou a forma monstruosa,
e não me ver passou a ser álibi ao objeto,
a pena branda que me permite voar.

Nunca mais viverei fora deste infinito,
nem posso mais me ver fora de qualquer morte:
a minha utopia destruiu as utopias,
minha condenação absolveu os inocentes.

O que me tornei fez do objeto nova raiz,
o último caminho se tornou o próximo,
o desvio que cumpriu sua total sentença,
o particularismo de não ter a marca.

Não fui vítima, apenas tive outros olhos!
Se fui escravo, fora daqui tive reinos,
e com estreitos ombros fui amargo marítimo,
vadiei por oceanos que não conheci.


A outra descoberta de sempre

Procuro o meu país e não o encontro
nas contradições dos sinais de trânsito,
nos ventres reconfigurados das mulatas,
nas bandeiras redimidas dos estádios,
nas teledramaturgias realistas,
nos livros em outros idiomas,
e na falta ou excesso de monumentos,
nos off-sides ou impedimentos,
nas relações pessoais, interpessoais ou transpessoais:
tudo registrado em
canções
poemas
romances
ensaios,
grafites,
ah, é dura a vida da literatura!
O cotidiano não existe!


A língua morta

Sob um cenário operístico,
um conluio de surdezes,
como no entreato de sombras,
os sete justos se odiaram,
os sete anjos se negaram!

O humano, irreconciliável
com o sagrado, se despe,
aprendeu tardiamente:
o espelho é onde ele se perde,
onde o paraíso dorme.

Suado, no meio da noite,
acorda e pensa na morte,
esquece os nomes das cruzes,
o mundo sem luz, um abrigo,
em seu lugar, outro sonha.


O esgar do anatematizado

Creio em todas as inverdades;
toda invenção é minha,
toda loucura eu pari,
todo conforto desprezei.

Creio em todas as bruxas;
toda punição é sorriso,
toda lucidez é vingança,
todo luxo é farsa.

Creio no lixo da História,
creio nas interrogações,
creio no fim das almas,
creio nos escombros da carne.

A vida é disfarce
(por isso mentira e verdade);
a vida é suspeita
(por isso óvulo e espermatozoide);
a vida é trisca
(por isso injusto na justiça);
A vida é recordação
(por isso fora e dentro do caos).

Do nada, reinicia-se;
não há fim, nem começo,
não há meio, nem há ciência,
mas há natureza no vago. 


A AURORA DESMORONADA A AURORA DESMORONADA Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:02 Rating: 5

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