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GEOMETRIA DAS PEDRAS, DE VERNAIDE WANDERLEY



Por Vernaide Wanderley*







Capa: Divulgação







TEMPESTADE FRUITIVA E MUSICAL*

(Para Maria de Lourdes Hortas)




Por várias noites, ela escutara sons agudos e suaves, entrando pelas frestas da cortina e ajuda da luz fininha da rua. Invasão de dor e encanto a configurar o quarto, a casa e bairro que dormia na madrugada.

O Tocador, a flauta, o realejo, o sax, foram sempre imagens marcantes em sua vida. Sentia a invasão sonora e fantasiava transgressões e afagos. Observava o próprio corpo e tudo que a cercava, sabendo que eles formavam um mesmo texto. Harmonia transversa expondo-se em canto para ela que há muito deixara de acreditar na beleza e possibilidades humanas.

Sem temer as teclas, ela relembrava evoluções e estreiteza dos caminhos, preparava armas para esquecer a hostilidade do traçado urbano. Com a literatura aprendera a transpor ausências, acender prazer nas visitações e fazer o amor começar, sem medo para cativar os astros e não repetir esperas inúteis.

Em alguns momentos, a luz fininha e sonora entrava pela janela do quarto e transformava-se em enxurradas ou incêndios. Tempestade sobre seu olhar e corpo trôpegos, desfocados, enfim serenos. Algo dolorido e cheio de feitiço.

Mas se o Tocador entrasse pela porta?

As noites seguiram seu caminho, esperavam que ela escrevesse sem temor. Os sons sempre tendiam à harmonização quando já era tarde. Tão tarde que não sobrou tempo para ver as partituras nem a nudez da face e do corpo daquele homem a tocar incansável. Ficou essa lacuna na sua vida como dor de perda!

Ela queria conhecê-lo ou não mais ouvi-lo? Acostumara-se ao ritual que ele proporcionava e chegara a pensar que tocava apenas para ela. Quando deixou de ouvi-lo, as noites ficaram mais sonolentas e seus escritos profundamente mudados. Passou muito tempo para compreendê-los.


Magia e ritmo de teclas pretas
jorram textos pela noite musical,
luz fininha pelas frestas da casa.
Ela trabalha incansável
sob a leveza da flauta doce,
pancada pianíssima de pandeiro
pranto de sax e bandolim.
Reformou longos textos
prometeu métrica e rimas a tecer
em cada dia de anos bissextos.



*Do livro “Geometria das Pedras”, Novoestilo, 2019.












*Vernaide Wanderley é poeta, escritora e pesquisadora social.

GEOMETRIA DAS PEDRAS, DE VERNAIDE WANDERLEY GEOMETRIA DAS PEDRAS, DE VERNAIDE WANDERLEY Reviewed by Natanael Lima Jr on 09:13 Rating: 5

Um comentário

  1. Este poema, que a autora me dedica, é uma amostra da bela e profunda poesia de Vernaide Wanderley, recentemente reunida no livro Geometria das Pedras.

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