O Conto da Semana
Fantasia manchada de batom carmim (conto)* de
Fernando Farias
Img: Reprodução
Agora sou
apenas uma fantasia. Deixo-me levar no mesmo frevo das outras máscaras. Uso
apenas uma mortalha preta e a máscara branca, ornada de serpentinas.
Parece cheia
do Capibaribe. Vassourinhas varre a multidão serpenteando pelas ruas do Recife.
É o Galo da Madrugada colhendo tanta gente que nem o sol deixa sombras.
Imagino-me
voando sobre o rio do João Cabral e, embaixo das pontes decoradas de bandeiras
do poeta Manuel, vejo os caranguejos dançarinos do mangue.
Sinto o cheiro
de perfume do talco, fazendo-me lembrar as outras encarnações, quando eu
brincava nas festas à Saturno e ao deus Baco. O mesmo prazer me empolga.
A marcha
militar acelerada impõe o ritmo e harmonizam as batidas dos corações. Parece
uma mandinga. O sopro dos metais contamina o sangue e gera a dança epilética
desengonçada.
Eis que escuto
um frevar de pés mais leves, passos de alguém que consegue dançar sem tocar o
chão, como se a flutuar sobre rosas. Sinto-me atraído. Experimento no ar o
cheiro diferente, o cheiro que tem nos seios das mulheres negras quando estão
suadas.
Vejo que há
muitas colombinas dançando com pierrôs e já não sou um ser completo. Continuo
frevando e com os olhos de radar busco encontrar a moça solitária dos passos
tão leves.
Finalmente,
perto do estandarte que rima com escarlate, eu a vejo. Uma alma criança vestida
de mortalha branca e máscara negra, ornada de serpentinas, os olhos verdes e o
sorriso de batom carmim. Achei a minha Maria Bonita.
Nossos olhos
se encontram. Soam os clarins e escutamos aplausos. Evoé. Chovem confetes e nos
abraçamos. Dançamos felizes, rodopiando, capibando, sabendo que já nos
conhecemos de outros carnavais. E o Galo nos leva numa pororoca pelas ruas até
escurecer por três dias nas ladeiras de Olinda.
Agora, escuto
apenas os sinos da missa da quarta-feira de cinzas. Clareia o dia no chão de
pedras lisas do Pátio de São Pedro. Na rua deserta, apenas um homem cambaleante
insiste em carregar o estandarte do clube. Estou caído na calçada, sem a minha
máscara decorada de serpentinas.
Lembro-me que
pegou na mão do homem da fantasia colorida, um palhaço, e volúveis entraram
numa jangada. Ela se foi. Levou a minha persona e me deixou sem rosto.
Manchado de
batom carmim, eu caminho invisível entre as beatas na Praça do Carmo. Foi
apenas uma fantasia.
*Este conto recebeu menção honrosa no Concurso
Luiz Jardim de Contos, biblioteca Casa Amarela. Prefeitura do Recife em 2007.
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:40
Rating:
Belo conto, parabéns.
ResponderExcluirObg em nome do escritor Fernando Farias. Enviarei seu comentário para ele.
ExcluirAbç,
Natanael Lima Jr
Obrigado amiga
ResponderExcluirMuita paz
quero conhecer teu trabalho.