TransWinter

A Ternura das Mãos





Fátima Quintas*














Imagem: Reprodução


  
Minha alma guarda impressões antigas, tão antigas que desprezo datas. Há em mim uma lembrança ancestral que me acolhe e me atormenta em um círculo de ir e vir. Quantas vezes tentei aplacar suas marcas indeléveis? Mas minhas mãos se ameigam mutuamente, perdoado-me, perdoando-me, perdoando-me... Uma absolvição plena de complacência. Dança exuberante em coreografia.

Aliso os cabelos. A delicada gesticulação corresponde a um ato de piedade. Piedade de quem? De mim mesma. Meu viver é um sentir, não um pensar. Entre a ação e o imobilismo, os lábios repetem frases formuladas aleatoriamente. Nem sei o que digo. Sei o que sinto. As mãos, com sua habilidade de mitigar dores desconhecidas, me escoltam, protegendo-me incondicionalmente – eu, uma frágil passageira do tempo.

Olho-me intensamente. E vejo as mãos a tatear o corpo, carentes, misteriosas, indefesas, mas hercúleas na intenção de indulgenciar meus defeitos. Os longos dedos, o movimento cadenciado, o jeito de espalmarem-se em adeuses ou de reprimirem-se em recolhimentos, dizem de atitudes que a poucos importam. Inquietas, buliçosas, frementes, rogam por outras mãos, mãos iguais ou diferentes, mãos que se alongam em encontros indissolúveis.

Na intensa expressividade de sua mímica, calo-me em respeito à beleza da consubstanciação. Não preciso de palavras para externar o que vem de dentro. As mãos me bastam na canção do amor. Como gostaria de vê-las entrelaçadas com outras! Divirto-me com a minha própria imaginação. Afinal, ninguém pode de mim usurpar os volteios da inventividade. Que eles povoem a mente, agigantando o que eu não posso ter, apenas ouso cultivar, e até cultuar. Sou um fantasma pleno de diabruras. Não me encontro com pouco. E minhas mãos não me decepcionarão. Sábias, converter-se-ão em fies aliadas. A elas recorro para arremessar-me a aventuras impossíveis.

Cavo a terra com o intuito de apalpar o húmus da origem. As mãos rasgam o chão que meus pés um dia pisaram. Desde cedo, aprendi a seduzir-me em face dos seus malabarismos. Na infância, jamais fugi dos rodeios proibitivos. Tive a suficiente astúcia para driblá-los em nome da sobrevivência. Acovardei-me, todavia, com o passar dos anos. Perdi os arroubos impulsivos. Evitei duelos. Escondi-me. Aceitei a condição de fugitiva. Só as minhas mãos revelaram-se audaciosas na circunferência da timidez.

Nelas renasço. Quão corajosas! Prontas para libertar-me de indevidas prisões. Tenho em minhas mãos a cumplicidade de que necessito. Nunca me falharam, gritaram, sim, generosas aleluias. Estiveram diuturnamente atentas, às vezes para acusar, outras para acariciar. Não se furtaram ao menor dos acenos. Minhas, tão minhas, que são mais eu do que eu mesma.

O tempo é a matéria abstrata da vida. As mãos, o meu instrumento de quase concretude. Não há descompasso nem descontinuidade nessa trajetória. Minhas mãos sintetizarão a consciência do desejo. Sobra-me astúcia para levantar os perdidos troféus. Não me desesperarei.

Quero andar de mãos juntas, sempre juntas. Ou para oração que tanto preciso, ou para selar amores ainda indecisos. Se me falta coragem dos vitoriosos, às mãos atribuo a propriedade de descerrar invioláveis frontispícios. Resta-me a esperança do seu talentoso manuseio.


*Fátima Quintas é escritora, ensaísta, professora universitária, presidente da Academia Pernambucana de Letras.






POEMAS DE LUCILA NOGUEIRA, TEREZA TENÓRIO, DEBORAH BRENNAND, LOURDES SARMENTO E CIDA PEDROSA





Diagnóstico*
Lucila Nogueira

           a Lourdes Sarmento



se você me tortura
é porque quer acariciar-me
acendo as lâmpadas submarinas da carruagem
ardendo sulfurosa no azul do aquário
se você me tortura
é porque quer acariciar-me

(In mas não demores tanto, 2011)



Amor
Tereza Tenório


Disse-me que amava em mim a estrela
nua que cintila em minha fronte.
Disse-me que eu era sol e o dia
e todas as aves do horizonte.

Ele que se deu a mim inteiro
transformou-se em sangue e maresia.
Demônios lunares o levaram
e afoguei-me lúcida e sombria.



Igual a mão
Deborah Brennand

Velhas cortinas de renda
Por sonhos bordando brasões
Agulhas trançaram ouro e linha
Em sombras fugazes de flores
Fantasmas de um morto verão.
Cobrindo vidraças, embaçando a vida,
Escondes desvarios, alucinações,
Olhares perdidos de condessas
Caminhos ocultos na distância
E o vento forte, agitando o pano
Com a rudeza de sua mão.


Para que não tardes
Lourdes Sarmento


O galope do cavalo
chama a tarde
           sonolenta e fria
abre a flor
          pouco a pouco
pouco a pouco
como regente de uma sinfonia
comanda músculos e nervos
          abre perfumes
embriaga a tarde
          para que não tardes
                               ao banquete
banquete das flores
          à beira do Sena




Diferença
Cida Pedrosa


meu amor ouve fado
não rodopia
apenas baila e espreita.

eu gosto de tango.

minha mãe sempre diz:
seus olhos são trágicos.



 
Diga aí!



“Não quero saber do sofrimento, quero é felicidade. Não gosto de fazer lamúrias. Uma vez, discuti feio sobre determinada situação. Fiquei sozinho em casa, cheio de razão e triste pra cacete. Então, pra que querer ter sempre razão? Não quero ter razão, Quero é ser Feliz!” (Ferreira Gullar)



 
Diga lá!

Março é o mês de nascimento e encantamento de importantes poetas. Fique por dentro aqui.

*Patativa do Assaré (CE) – 05/03 (Nascimento)
*Bastos Tigre (PE) – 12/03 (Nascimento)
*Castro Alves (BA) – 14/03 (Nascimento)
*Gilberto Freyre (PE) – 15/03 (Nascimento)
*Menotti Del Picchia (SP) – 20/03 (Nascimento)
*Olegário Mariano (PE) – 24/03 (Nascimento)
*Lula Côrtes (PE) – 26/03 (Encantamento)
*Natividade Saldanha (PE) – 30/03 (Encantamento)






A Ternura das Mãos A Ternura das Mãos Reviewed by Natanael Lima Jr on 11:58 Rating: 5

2 comentários

  1. Parabéns pela bela seleção de poetas nesta postagem.

    Abraços

    Márcia

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    Respostas
    1. Agradecemos sua atenção e comentário.
      Abraços,

      Natanael Lima Jr
      Editor

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